A telenovela Mário Crespo vs Sócrates tem sido, no mínimo, curiosa. É de louvar que o jornalista ainda os tenha no sítio e faça frente ao bicho papão em que pretende transformar-se o indivíduo que desgoverna a nação. Por outro lado, é absolutamente caricato que esse mesmo sujeito se não aperceba que a repercussão das palavras do jornalista é muito superior ao alcance que teriam tido os seus textos, já que o povo não é dado à leitura de jornais, muito menos à dos artigos de opinião que nestes constam, e que o Jornal de Notícias não é um dos diários dilectos da maioria dos portugueses. A coisa teria passado de pantufas, não receberia honras de telejornal, nem andaria nas bocas do mundo. Assim sendo, e mais uma vez, Sócrates não primou pela inteligência.
Quanto ao despropósito dos comentários tecidos em público por este na companhia de três membros do seu séquito, os quais são abaixo nomeados no artigo que Crespo deveria ter publicado e que foi alvo de censura, parece-me que não há razão para espanto. Afinal, estamos perante indivíduos de incontestável boçalidade, de incontornável prepotência e, acima de tudo, de suprema ignorância. Ignorância, em particular, dos pressupostos basilares em que assenta um Estado de direito, pelo que seria profícuo enviar ao senhor Primeiro-ministro um lembrete com o artigo 2º da Constituição da República Portuguesa: «A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.»
Será que o nosso Primeiro pretende rescrever a Constituição? Se calhar pretende mesmo é queimá-la, algo mais consentâneo com os seus padrões de conduta.
Não posso deixar de recordar, na sequência deste episódio e de tantos outros que o antecederam, a célebre "Lei das Rolhas", que impedia a liberdade de imprensa e contra a qual se insurgiram ilustres membros desta nação, entre os quais Alexandre Herculano, Latino Coelho e Almeida Garrett, o intelectual liberal a quem muito devemos e graças a quem temos um Teatro Nacional e um Conservatório Nacional. Tendo em conta, porém, que tal aconteceu em 3 de Agosto de 1850, pensei que cento e sessenta anos depois estaríamos a salvo de similares arbitrariedades tacanhas e indiciadoras da mediocridade que nos governa. Enfim, ilusões! Afinal trata-se do homem que promoveu o Cagalhães em 2008 na cimeira ibero-americana dizendo que este é "uma espécie de computador Tintim, porque é para ser usado dos 7 aos 77 anos" e "porque é resistente ao choque", como comprovou o próprio presidente da Venezuela, Hugo Chavez, que "já o atirou ao chão". Quem usa o nome e a violenta intimidade de um ditador execrável para promover uma façanha irrisória, a jeito de auto-publicidade a um governo desaustinado, é alguém que se auto-caracteriza com uma triste acuidade, a que só ficam indiferentes os acéfalos ou os que também mamam na teta da grande vaca do Estado.
Resta saber se José Sócrates também vai atirar ao chão todos aqueles que, em nome da liberdade de expressão e da divulgação da verdade, lhe ousarem fazer frente. Creio que tal procedimento seria extremamente profícuo, pois este povo amorfo precisa de ser incitado à rebelião. Mais uma vez me rendo aqui às palavras de Guerra Junqueiro, cuja contemporaneidade é desoladora e vergonhosa:
"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. (...) Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímis (...). Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este, criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País. A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas. Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."
Posto isto, resta ler o texto de Mário Crespo e ter fé num levantamento popular, pois nada indicia que o Presidente da República tome as decisões que se impunham para acabar com tantas escandaleiras que enchem as páginas dos jornais e descredibilizam mais ainda a nação no exterior. Afinal, até me sinto com alma de padeira de Aljubarrota e apetece-me mais malhar em alguma da minha gente do que nos Castelhanos!
2 comentários:
Amiga,
Tenho repartido o tempo entre vários trabalhos mais ou menos urgentes, o que me tem impossibilitado de desenvolver o tal projecto que mencionei há um par de meses. É preciso maior disponibilidade do que a que eu tenho presentemente. E cabeça fria para reflectir, que a situação está a descambar de forma tão acelerada que só dá vontade de soltar o nosso lado Sá Pinto urbanamente contido.
Bjocas
Amigo, nem me fales em trabalho!... De qualquer modo acho que os nossos projectos devem ter prioridade, pois afinal esta vida é demasiado curta e o métier em que investimos cada vez dá menos frutos. Assim sendo, deita mãos à obra!
Quanto ao actual contexto político, nunca vi semelhante macacada. Não sei o que pense, nem o que espere, mas tento manter o optimismo, senão é o descalabro.
Beijos e bom Carnaval.
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