sexta-feira, abril 20, 2007

Tributo ao amor

-A senhora podia ser a minha menina!- disse-me a dada altura aquela mulher simples, de traços rudes mas bondosos, virando-se para trás. E os seus olhos meigos, rodeados por mapas de finas rugas, encheram-se de brilho líquido.
Seguíamos por uma estrada de paralelos junto ao rio Douro, cercados pela paisagem dura e verdejante do norte. O rio espreguiçava-se terra adentro, sereno e plúmbeo, contrastando com a dança ondulante das árvores que, sujeitas aos caprichos do vento, derramavam verde pelas encostas. Estranho retorno este à paisagem da minha infância, às memórias de um tempo em que acreditei na imutabilidade da existência.
Olhei para o meu pai, subitamente amarrotado nas folhas do seu livro íntimo mas, ainda assim, logrando manter a beleza digna e sóbria da capa, e o mar escorreu-me pelas faces, salgado e frio. "Não podes fraquejar agora!", pensei pela milésima vez. "Esta é uma peça de acto único, sem direito a ensaio prévio ou a repetições. Vais estar à altura!"
Estava dentro de uma bolha de sabão, anestesiada até aos ossos, consciente porém de que, a qualquer instante, uma dor cruel e irreversível iria explodir dentro de mim com a fúria de uma tempestade de gelo. Tentei embalar-me nas recordações de tempos felizes, de leite e canela, de colo materno, de cheiro a maçãs e a orvalho. Pensei na quinta do meu avô, que iria breve rever tantos anos volvidos, e vi-o no cimo das escadas, alto e seco, sempre direito e distinto, com ar de aristocrata inglês. E os seus belos olhos cinzentos e frios, que intimidavam meia Lagareiras, olhavam-me com aquela inusitada ternura que ele guardava só para mim e para os animais doentes, dando-me as boas vindas e aquecendo o meu coração triste.
À frente, a mulher acalmava agora o motorista, irritado com as curvas do terreno acidentado e indiferente à melancolia doce da paisagem. Ia já a meio aquele dia invernoso, o dia 13 de Dezembro, e a prática criatura não compreendia como podíamos ter querido trocar o conforto rápido da auto-estrada por aquele calvário labiríntico. O estômago dava-lhe horas e a viagem teimava em não terminar.
Fechei os olhos e olhei para a minha mãe. Que estaria ela a pensar naquele momento? Sempre tão lúcida e prática, talvez se interrogasse também sobre o porquê daquela escolha. Ou talvez percebesse quão desesperante é o esforço gratuito de honrar e preservar a memória daqueles que amamos... Tentamos, em vão, homenageá-los através de actos simples e pueris. Desejamos, em vão, revê-los nos percursos que lhes eram queridos e que fizeram a nosso lado, lembrando o calor dos seus corpos, o seu cheiro característico, as conversas que então entabulavam. Sim, a minha mãe sabia que eu me sentia perdida, subitamente tão velha como aquelas árvores e aquelas águas e profundamente solitária naquele enorme carro agoirento. Sabia que uma ferida gigante e em carne viva nascera dentro de mim e que eu lutava para estancar o sangue e sublimar a dor. Sabia que tudo o que eu desejava naquela hora era nunca ter nascido, para não ser uma das personagens centrais de tão macabro filme.
A minha mãe, agora um pedaço de mim que me fora arrancado e que seguia atrás sem já lá estar... Fria, serena, bela, por onde andaria ela quando eu estava tão só? Que contemplariam aqueles transparentes olhos verde água, inteligentes e perscrutadores, que liam em mim como num livro aberto? Que sentiria aquela pele nívea e macia, de leite e mel, tão suave e sensível que rejeitava o sol? Que mãos afagariam os seus fortes cabelos dourados? Quem beijaria os seus lábios em forma de coração? Quem olharia com mais amor do que nós aquele rosto de eterna menina? Quem cuidaria melhor do que nós daquela pequena e leve boneca de porcelana?
Estávamos praticamente a chegar, o homem parara de resmungar e a mulher estava agora estranhamente calada e macambúzia. O medo do que me esperava tornou-se tão forte e imenso que quase se corporizou, como se uma outra pessoa que seguisse a meu lado. Nem a perspectiva de rever dezenas de familiares e tê-los junto a mim aplacou o meu pânico. Senti o coração bater loucamente, como se quisesse saltar-me do peito e esborrachar-se no chão a meus pés.
Foi aí que olhei a paisagem da minha infância, agora com atenção, como se abraçasse um ente muito querido após um longo interregno, e decidi então que era ali, naquele local, que a minha mãe descansaria para sempre. Permaneceria em harmoniosa fusão com a natureza, livre, leve, incomensuravelmente feliz, sempre bela e em constante renovação. Dei a mão ao meu pai e percebi que ia conseguir aguentar todos os rituais inúteis que se seguiriam pois, dentro de mim, tinha dado uma eternidade de paz a Maria, minha mãe.