quinta-feira, fevereiro 28, 2008


os barcos são a imagem que resta para fugir
mas só as palavras nos embriagam
são labareda que devora os barcos e a memória
onde nos movíamos
esquecemos o que nos ensinaram
e se por acaso abríssemos os olhos
um para o outro
encontraríamos outra imobilidade outro abismo
outro corpo hirto
latejando na imperceptível ferida nocturna

pernoito na precária vida do fogo
este rumor de mãos ao de leve pelo corpo
adormecido na superfície do espelho
assalta-me o desejo incerto de te acordar
e o medo de querer de novo tudo reinventar

Al Berto, Uma existência de papel


A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.

Ricardo Reis

(foto Julien Roumagnac)

Just kiding!

terça-feira, fevereiro 26, 2008

Preto no Branco


Se há programas que me enervam são exactamente aqueles em que pessoas de diferentes quadrantes profissionais decidem opinar taxativamente sobre questões que praticamente desconhecem, baseando-se apenas na sua realidade pessoal ou nos seus recalcamentos. Hoje porém assisti a uns quantos, em diferentes canais noticiosos, movida por natural curiosidade em relação às ilações que os portugueses retiraram das contestações dos professores frente à Ministra da Educação. E como muito me surpreendi com os despautérios da opinião pública, não resisto a analisar as críticas mais recorrentes dos cidadãos que se manifestaram na comunicação social.
O programa Prós e Contras de ontem pretendia clarificar vários falsos pressupostos que se incrustaram na dita opinião pública, ao longo dos anos, no que toca à classe docente e revelar as reais causas da actual indignação dos professores. Já nem ouso afirmar que este programa pretendia estabelecer o diálogo entre os professores e a sua Ministra, pois o tempo da utopia já lá vai e é gritante o autismo que agora impera em versão de cassete pirata curta e repetitiva! "O Inglês no Primeiro Ciclo, as aulas de substituição, os cursos técnico-profissionais e o aumento do sucesso" Como disse?! Não, por favor não repita! Contudo tenho que admitir que a Sra. Ministra tem sorte pois, tal como ela, muitos dos portugueses também não conseguiram ou não quiseram descodificar a mensagem dos docentes.
Vamos aos factos. A Sra. Ministra disse que as suas visitas surpresa desagradaram aos professores, quando na verdade o que lhes não agradou foi o facto das mesmas ocorrerem em horário lectivo, terem uma duração média de quinze minutos e se destinarem apenas à observação das instalações, não contemplando assim a auscultação das opiniões e reivindicações do corpo docente conforme ousou referir no seu discurso de inverdades. E esta é uma afirmação que pode ser corroborada por inúmeros docentes de diversos estabelecimentos de ensino da grande Lisboa. Portanto era bom que aqueles profissionais dos outros sectores, que também são avaliados e que por acaso detestam sê-lo, percebessem que não se temem as visitas da big boss. Os professores são indivíduos que trabalham a toque de campainha e que não podem apanhar trânsito de manhã ou levar tranquilamente os filhos à escola ou até mudar de sapatos por terem pisado caca de cão. Também não podem ter distúrbios intestinais, nem atender telefonemas ou fazer intervalos para cafezito, excepto durante os escassos minutos previstos para o efeito (vinte + quinze durante cinco horas). Mais! Os professores não podem ir de férias em Abril, ou em Maio ou quando lhes aprouver, nem fazer férias repartidas ao longo do ano. Ainda mais! Os professores não podem ousar fazer luto, nem ficar doentes, nem sequer morrer sem atribuir classificações de final de período aos seus alunos! Então por que razão os professores teriam que ter medo de uma visita surpresa da Senhora Ministra?! Talvez porque o seu médico teme a visita da sua Ministra quando faz um domicílio de duas horas, talvez porque o empregado do café teme a chegada do patrão enquanto se senta na palheta com os clientes, talvez porque aquele amigo que trabalha numa multinacional com regalias e vencimento impensáveis na função pública telefona para o escritório da praia e diz que a reunião com o cliente está complicada e durará toda a tarde! E como cada um avalia a realidade alheia por si, retiram-se ilações levianas e erróneas.
Entretanto os professores já referiram infindáveis vezes que não estão contra a avaliação e sim contra a forma irregular, arbitrária e ilegal (assim o entenderam os Tribunais Administrativos!) de que a mesma se reveste. É lamentável que muitas pessoas o não compreendam quando isto já foi explicado vezes sem conta de forma tão clara por todos os legítimos representantes deste sector. Será talvez caso para concluirmos que as dificuldades relativas à língua portuguesa são extensíveis à maioria da população lusa e não apenas àqueles que de momento frequentam a escola!
É necessário clarificar igualmente que não se trata hoje de um protesto da Fenprof e sim de um protesto massivo dos professores deste país, independentemente da sua orientação política ou do sua colocação na hierarquia profissional. Quanto ao argumento de que os professores estão sistematicamente contra todas as medidas do seu Ministério, o que também se ouviu à boca cheia e em tom jocoso, esta é uma afirmação deturpada e falaciosa. Os professores acataram o congelamento das carreiras para conter o despesismo e reabilitar as finanças do país. Os professores acataram uma requisição civil que foi dada como inconstitucional pelo Tribunal dos Açores. A avaliação promete continuar quando seis providências cautelares foram aceites pelos Tribunais Administrativos e, no fundo, os professores ainda se interrogam se devem ou não acatá-la. Não ocorre ao comum cidadão que estes poderiam tão simplesmente ficar em casa sem qualquer respeito ou preocupação pelos seus alunos e familiares enquanto esta política autista e inflexível do seu próprio Ministério se mantivesse? E uma coisa é certa: se os docentes deste país quisessem alinhar num braço de ferro desta índole, certamente que os transtornos causados à sociedade civil fariam recuar os responsáveis pelas políticas governamentais da Educação. Mas os professores não trabalham com máquinas, nem podem ser, por mais que se invista em aulas de substituição, devidamente substituídos por quem quer que seja na sua prática lectiva. Os docentes respeitam o futuro daqueles que ensinam e não pretendem lesá-los, nem mesmo que seja em prol das suas legítimas reivindicações. Há excepções? Claro que sim! E qual é a profissão em que tal não se verifica? E por que razão não se recordam os cidadãos que o artigo 102, aquele que permitia a um professor faltar uma vez por mês, foi concedido pelo Salazar à classe docente pela correcta noção do desgaste que esta profissão implica? É caso para dizer que já houve ditadores mais lúcidos e honestos do que estes seus contemporâneos travestidos de socialistas! E para que servem as estatísticas que corroboram ser esta uma das profissões com um maior índice de stress e uma maior incidência de esgotamentos nervosos e depressões? Fica mais barato ao país providenciar-lhes cuidados médicos e substitui-los por outros profissionais?
Relembre-se ainda que os professores têm há alguns anos, como já se referiu, as carreiras congeladas, os vencimentos congelados e que a actual progressão na carreira passa pelo número de vagas existentes na sua escola, o que significa que se o corpo docente for maioritariamente envelhecido a progressão estagna para os mais jovens. Como é que se pode assim falar de progressão por mérito e premiação dos profissionais mais qualificados quando o que há é uma progressão por quotas numa perspectiva economicista e injuriosa?! De facto, promover quem está no topo da carreira e já não pode ganhar um maior salário impedindo que os restantes progridam em termos monetários é somente uma forma astuciosa de implementar uma política de engordamento dos cofres do Estado. E para quê, se todos pagamos mais impostos, temos menos regalias sociais, vemos aumentar o custo de vida, subir os juros e fechar os postos de saúde, entre outras medidas terceiro-mundistas?! E o povo aplaude, o povo rejubila, o povo hurra bravos ao Sr. Engenheiro! E ainda há quem refira indignadamente a ausência de dedicação e de espírito de sacrifício da classe docente, como hoje ouvi, o que é absolutamente descontextualizado e ridículo pois os professores não são padres nem as suas despesas se pagam com idealismos!
Creio que mesmo assim o que é consensual é que a Sra. Ministra devia pensar seriamente na reestruturação dos Programas, a começar pelos do Primeiro Ciclo e pelos dos cursos CEF e técnico-profissionais (o escassos que existem), pois como foi demonstrado ontem é essencialmente aí que reside a causa do insucesso escolar. É no facto das escolas terem currículos exigentes e unidirecionados, de não haver alternativas consoante o perfil, as capacidades e as apetências dos alunos, tipo o que acontece na Alemanha, por exemplo, há umas quantas décadas. Mas ao invés disto, o que o Ministério vem implementando há longos anos, e é verdade, é uma política de facilitismo como forma de combater o dito insucesso dos alunos. Basta saber que estudantes do Ensino Básico com sete, oito ou mais negativas, com elevado índice de absentismo e total ausência de empenho e de trabalho, interpõem recurso à Drel e passam de ano ao abrigo da elevada taxa de repetência e da idade avançada. Isto se o Conselho Pedagógico não for antecipadamente coagido a fazê-lo, pois a coacção é um facto, quanto mais não seja pela quantidade absurda de documentos que é necessário preencher e de reuniões que têm que se realizar para fundamentar as causas do insucesso dos alunos. Para já não referir que uma das condições da tal suposta progressão na carreira por mérito é a ausência de abandono dos alunos e a obtenção de sucesso pelos mesmos. Será caso de cogitar a hipótese de dar aulas atrás dos pavilhões, no salão de jogos ou no átrio da igreja onde os absentistas fumam charros para evitar que faltem às aulas? Será adequado dar o teste para trabalho de casa, corrigi-lo depois e realizá-lo na aula seguinte, enviando até para casa dos que se baldam o teste já feito para estes poderem vir realizá-lo, se faz favor, no dia em que mais lhes convier? E aos bons alunos ensinarão os mestres que eles são uns totós visto que os seus colegas não reprovam por faltas, nem por mau comportamento, nem por más notas? Premeiem-se portanto os gandas malucos e mostre-se aos outros que eles são uns otários? Mas o mais grave, e que ninguém parece ponderar, é qual vai ser a integração destes indivíduos no mercado de trabalho ou quais serão a curto prazo as consequências deste tipo de procedimento para o progresso global do nosso país. Talvez quando a Sra. Ministra se lembrar de penalizar monetariamente os pais pelo insucesso dos seus filhos este diminua então de verdade!
Ouvi também falar na disparidade da qualidade entre o ensino público e o ensino privado. O que não se nomeia é a dignificação do exercício da actividade docente no sector privado, nem a disparidade das condições de trabalho ao nível das infraestruturas e da existência de funcionários, nem o apoio facultado pelas famílias aos estudantes, nem a disparidade dos conhecimentos, empenho e disciplina dos próprios alunos. Assim como ninguém nomeia a existência de múltiplas actividades facultadas pela escola pública que passam pela carolice e investimento não remunerado de inúmeros docentes, a saber clubes de escrita criativa e de leitura, grupos de teatro, núcleos de desporto, actividades dinamizadas pelas bibliotecas, jornais escolares, salas de estudo, gabinetes de inserção e de apoio ao aluno, visitas de estudo, entre tantas outras. E ninguém é pago para tal, nem isso se reflecte na progressão na carreira ou no acesso à titularidade! Assim como não se refere que é das escolas públicas que saem a maior parte dos licenciados deste país que encontram receptividade aos seus credíveis diplomas no mercado de trabalho, estudantes que se formam por mérito e não pelo pagamento de elevadas propinas ou pela atribuição de inúmeras classificações em diferentes cadeiras pelo mesmo docente(?!).
Que futuro para um país em que não se dignificam aqueles que presidem a uma área vital para o seu real desenvolvimento? Corações ao alto!

(quadro de E. Munch, O Grito)