quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Quando a água não lava






Desafiar a natureza nunca trouxe bons resultados. É fundamental que tenhamos a noção da nossa impotência perante a fúria dos elementos e que percebamos que, quaisquer que sejam os imperativos que nos levam a interferir com o curso dos rios ou a morfologia das escarpas, a mão do bicho homem tem que ser exímia e consciente. Porém, este tipo de cogitações não devolvem a vida aos que a perderam na ilha da Madeira no confronto injusto e desigual com as águas, nem aos que viram as suas casas reduzidas a escombros e os seus pertences transformados em destroços naufragados. Estou solidária com a sua dor e predisposta a dar o meu ridículo contributo para menorizar o seu sofrimento.
Entretanto admito que esta vaga de catástrofes que têm ocorrido um pouco por todo o globo (Brasil, Haiti, Itália, entre outros) me tiraram um pouco a serenidade com que sempre ouvi a chuva fustigar os telhados ou o vento assobiar pelas frestas das portadas. A minha casa parecia-me uma fortaleza inviolável, onde o único mal que me poderia suceder só viria de um malfadado telefonema ou de uma qualquer maleita que me levasse desta para melhor, pois ninguém sabe quando é que a senhora feia da foice se lembra de fazer das suas. Como disse o Ricardo Araújo Pereira em entrevista publicada na última NS, somos o único animal que ri e que sabe que vai morrer. É irónico, sem dúvida, mas o riso também é uma das formas de espantar o medo. Bom, mas voltando à vaca fria, a verdade é que desde a uma e trinta e sete do dia dezassete de Dezembro do ano passado, altura em que pela primeira vez na minha vida a terra tremeu debaixo do meu traseiro, nunca mais senti total conforto entre as quatro paredes da minha toca. Estava sentada no chão e encostada ao sofá com o portátil ao colo, a minha posição predilecta, quando ouvi estalarem todos os móveis da sala em simultâneo. Constatei o sucedido sem reflectir e prossegui o trabalho no qual estava embrenhada, sendo que, de seguida, surgiu um ruído profundo vindo do exterior. Pensei, instintivamente, tratar-se do camião de recolha do lixo e, eis senão quando, o portátil começou a dançar-me sobre as pernas e toda eu oscilava para a direita e para a esquerda, tendo porém consciência de estar imóvel. Por uma fracção de segundos achei que estava a alucinar e que o vinho do jantar era de primeira, pois ainda batia ao retardador. Contudo, rapidamente percebi que estava a ocorrer algo que me transcendia e fez-se luz. Então o meu primeiro impulso foi olhar para o relógio, o que é incrível. Como em todas as circunstâncias inusitadas, nem nós mesmos podemos adivinhar as reacções que teremos. Não gritei, não dei um salto, não saí disparada. Limitei-me a documentar o instante e a senti-lo com todas as fibras do meu ser, entre estarrecida e fascinada. Claro que, se a duração e intensidade do abalo fossem superiores, a coisa não se teria certamente processado desta forma, mas felizmente para mim, e para todos nós, aqueles segundos não deram para mais. Quando o chão deixou de ter vida própria já era eu que tremia, de medo, sem dúvida, mas sobretudo devido às sensações que se tinham apoderado de mim. Percebi a formiga que sou, mesmo quando a toca parece segura, e a força que me transcende e me pode esmagar sem pré-aviso nem contemplações. Percebi também a falta que ia sentir das minhas coisitas e refiz a caixinha de emergência, que tive durante muitos anos, com aqueles que considero serem os meus bens mais preciosos. E não tornei a dormir totalmente descansada, o que é uma grande treta, nem consegui voltar a encarar com a mesma racionalidade as desgraças alheias desta índole.
Posto isto, só me ocorre perguntar o que entende o melhor jogador do mundo, o rapazola madeirense que ganha quantias absolutamente pornográficas, por estar disposto "na medida do possível, a ajudar os organismos e entidades oficiais" nos trabalhos destinados à superação "dos efeitos desta grande devastação". Espero que isto, em bom Português, queira dizer guita, pilim, mufunfa, carcanhol ou qualquer outro sinónimo a que venham acoplados muitos números e um cifrão, pois não me parece que ele se esteja a referir a trabalho braçal de remoção dos destroços ou a ajuda na distribuição de bens essenciais às vítimas. Chuta a bola e ajuda os teus conterrâneos miúdo, já que te podes dar ao luxo de destruir cavalinhos empinados em brinquedos vermelhos, pois, sinceramente, dedicar-lhes golos não lhes enche a barriga.

2 comentários:

Jorge disse...

Ao rapazola, o talento esgota-se-lhe nos pés. O jogo de cabeça não é o seu forte.
Como não é o do jornalista (ou colunista, ou opinador, ou idiota chapado, às vezes vem tudo em conjunto numa embalagem económica) que escreveu no Jornal de Notícias:
"A tragédia madeirense talvez possa servir de exemplo para o que Portugal precisa: união de esforços para seguir em frente afastando, um a um, os obstáculos, que são muito grandes".
O diário "Público" dá destaque a esta atrofia mental na sua edição online de 24 de Fevereiro.
Eu, que fui livrado por Morfeu das sensações telúricas da noite de 17 de Dezembro, tremo agora ao pensar que os "obstáculos, que são muito grandes" e impedem Portugal de ir em frente, possam ser removidos por uma espécie de união nacional de esforços: os ricos dão as palavras, os outros dão o suor, as lágrimas e o dinheiro. Eu, que por esses mesmos opinadores tenho sido acusado de ser duplo obstáculo (funcionário público e professor), tenho razão para estar preocupado. É que a estupidez pode ser tão devastadora quanto uma catástrofe natural, mas a morte que provoca é mais lenta e menos parangónica. Começa geralmente pela morte cerebral de quem escreve ou debita a correr nos mídia, sem que esse estado seja sequer reconhecido pelos atingidos.

Beijocas

Kika disse...

Não podia estar mais de acordo com as tuas inspiradas palavras amigo, em particular com a penúltima frase. De facto, a estupidez de quem nos desgoverna, aliada à falta de honestidade, tem sido absolutamente devastadora, sendo que a morte lenta começa a acelerar e que, pelo menos no exterior, já temos direito às ditas parangonas. Estamos muito mal vistos no seio da UE e há quem deseje correr connosco. Os irlandeses até inventaram a sigla PIG para se referirem, de forma rápida e abreviada, aos que são personas non gratas no contexto europeu: Portugal, Irlanda e Grécia. O futuro não é auspicioso, mas tentemos manter a calma e aguardar pelo desfecho sem alarmismos de maior.
Bjocas