domingo, outubro 18, 2009

Saia Justa vs Vista Curta


Os Pastéis do Nosso Orgulho ou O Último Reduto do Achincalho

Volvidos dois anos, os portugueses finalmente descobriram que os brasileiros, personificados numa conhecida actriz das telenovelas que muitos deles vorazmente consomem e com as quais se anestesiam e estupidificam o cérebro, gostam de troçar deles. O milagre operou-se graças à divulgação do, agora famoso, episódio do programa Saia Justa. E a casa veio abaixo! Esfacelar o orgulho luso, principalmente quando se é tratado como irmão, cai mal. Se fossem os franceses, reconhecidos chauvinistas e pouco amantes das lusas gentes, a coisa passaria de pantufas. Se fossem os ingleses, até rejubilávamos. Afinal têm que se vingar das sucessivas tareias futebolísticas que lhes vimos dando, de não se terem apropriado do vinho do Porto ou de não conseguirem arrebanhar o Fernando Pessoa para o seu espólio de escritores. Se fossem os espanhóis, a nossa ancestral rivalidade já nos imunizou destas habituais picardias mútuas. Além de que dificilmente nos batem na má língua. Agora uma série de actrizes brasileiras num conhecido programa de entretenimento foi uma forte bordoada nas gentes. E então? Satirizar o próximo faz parte do imaginário colectivo, principalmente em se tratando do nosso colonizador. Além de que nós temos aqui muito por onde ceifar, se for essa a intenção. Finalmente, a capacidade de encaixe é sinónimo de superioridade, pelo que as virulentas reacções ocorridas nos últimos dias só inferiorizam aqueles que as protagonizam.
Mas percebe-se a histeria colectiva. Cheira a coisa de mal amados toda esta fita com honras de noticiário das oito, daqueles que se entregam ingenuamente e não aguentam uma traição. De facto, os artistas brasileiros são aqui tratados a Pão de Ló. Esta senhora, em particular, sempre foi muito acarinhada pela opinião pública, arranjou trabalho em Portugal quando andou na mó de baixo e até por cá lançou há tempos um livro com honras de escritora. Vamos convir que esta sua atitude é do tipo "cuspir na sopa e bater na avó", com a diferença de que ela cospe na fonte e bate em vários avós.

Ainda assim, não me sinto solidária com os meus compatriotas enfurecidos. Acredito até que o pedido de desculpa da actriz seja sincero e que a sua ideia tenha sido, de facto, brincar com as fraquezas dos tugas. O problema não é esse, visto que tal é legítimo e até pode ser divertido. O genuíno mal de tudo isto é que a senhora em questão não tem nem inteligência, nem subtileza de espírito para ironizar, nem cultura, nem piada absolutamente nenhuma, que afinal parece que era só o que ela queria ter, tendo em conta a sua justificação. Por isso, vamos a factos. Sintra não é uma vilazinha, é sim, segundo a UNESCO, Património Mundial desde 1995, visto ser um local paradisíaco e recheado de monumentos. Tanto espólio natural e cultural para mostrar ao mundo e somos brindados com um três ao contrário. Incrível! Até porque cada um em sua casa é rei e se quer espetar a placa invertida na porta, está no seu direito. Desde que as cartas não se comecem a tresmalhar por ingenuidade do carteiro (aquele que toca sempre duas vezes e não três) menos mal. Três são afinal, com muita sorte, os neurónios que povoam o cérebro da dita cuja senhora. Segue-se a história dos pastéis de Belém, deliciosos por sinal e que escaparam por milagre ao serrote, sendo que o local em que se vendem é particularmente emblemático de uma tradição de cafés que se perderam no tempo deixando saudade, visto que data de 1837, mas o espaço não é mostrado, mais uma vez. Não acredito sequer que a pobre criatura tenha enfardado quatro dos ditos, pois estes são altamente calóricos e ela só quer ter pele e ossos. Mas a ser verdade, e principalmente se estavam quentinhos, aposto que a caganeira foi valente! Depois temos a confusão do rio Tejo com o mar e a ilação de que estamos num país onde os rios também vão dar ao mar. Quem diria! Já agora, também estamos num local em que os comuns mortais não confundem rios com mar quando não são ceguinhos, mas enfim, como a senhora diz, nós somos muito esquisitos, pois então! Entretanto, em pleno Mosteiro dos Jerónimos, obra de arte manuelina de tempos de maior desafogo graças aos Descobrimentos, a criatura decide cuspir na fonte. Bom, eu sou loura, não percebi. Tem graça cuspir? As pessoas riem-se à brava quando alguém cospe, ainda por cima de forma tão desmilinguida e foleira? Bom, se queria cuspir em nós de forma ofensiva, então devia tê-lo feito à portuguesa e mandado uma valente escarreta verde e amarela com todo o vigor, em vez de arrepanhar a cara plastificada e verter a custo um liquidozito insípido. Já o Salazar esteve quarenta e um anos no poder, mas enfim, o que são umas dezenas de anos a menos, pois então. Deve ser o mesmo raciocínio matemático utilizado pela senhora quando lhe perguntam a idade. Quanto à parte do técnico informático, já nem me pronuncio. A única coisa que me ocorreria, se fosse uma digna brasileira que trabalha diariamente no duro, era questionar-me quanto à legitimidade de tal personagem merecer estar num hotel de cinco estrelas por fazer figuras de ursa e dizer patacoadas na televisão. Perante tal festival de mediocridade, ocorre-me mesmo é perguntar: "Andas a dar em que drogas minha?!" Chiça! É certo que também não faltam por cá tontos a ganhar dinheiro por fazer similares figuras de urso em programas de entretenimento, mas ao menos não resolvem canalizar a sua acefalia para o ataque a outros povos, em particular aqueles que albergam actualmente uns milhares de conterrâneos seus à procura de melhor sorte. Imagine-se que os portugueses se enfezavam de grande com os brasileiros e decidiam retaliar nos emigrantes? Que lindo serviço! Mas é claro que tais pensamentos não ocorreram a esta fantástica brincalhona. Certamente nem brasileiros viu em Lisboa, já que parece não ver a ponta dum corno à frente do nariz. Gostei muito foi do seu pedido de desculpas, naquela voz altamente lamechas e deslavada de menina fora de prazo, que é a sua: "Foi uma brincadeira caseira feita com um amigo. A gente brinca com a falta de formação académica do nosso Presidente, a gente brinca com a própria tragédia. Eu brinco com a minha própria mãe e com a minha filha. A gente brinca com aquilo pelo qual a gente tem afecto."
Comentários que se impõem: o verbo brincar tem as costas largas, já que pelos vistos inclui troçar, inferiorizar, achincalhar; brincadeiras caseiras não saltam para a televisão nacional via GNT; o nosso Primeiro-Ministro também tem uma formação académica altamente brincável; brincar com a própria tragédia é o que nós fazemos todos os dias; apelar à família é o recurso pobre e derradeiro de quem não tem quaisquer argumentos válidos para apresentar; usar a sintaxe com propriedade é o que compete a quem se dirige a mais de dez milhões de indivíduos que partilham a mesma língua, sendo que "aquilo pelo qual a gente tem afecto" é um violento pontapé na gramática, em particular para quem publica livros. Mas também temos por cá desses fenómenos em abundância, pois as prateleiras das livrarias estão entulhadas com o lixo de indivíduos que escrevem e que, pasme-se, até vendem, mesmo não sendo escritores. O truque é ser conhecido e escrever na primeira pessoa, já que poucos resistem a uma espreitadela por baixo das saias alheias.
Em suma, constata-se que é mais o que nos une do que o que nos separa, como tal, para quê tanta estupidez gratuita? Imagino só como se sente agora a senhora depois de ter andado enrolada com um dos tais portugueses esquisitos no qual havia cuspido uns tempos antes. Mais curiosidade tenho ainda em saber como se sentirá o dito senhor, um poço de impáfia, sabedoria e altivez, de língua bem viperina, ao perceber que toda a gente teve oportunidade de constatar em quão turvas e acéfalas águas se banha. Aposto que o seu orgulho também está tão esfacelado que até sangra. Só me apraz mesmo dizer: que rica telenovela versão reality-show!

Ainda assim, creio que as mais importantes ilações a tirar são as seguintes: uma andorinha não faz a Primavera e as pessoas não devem misturar alhos com bugalhos. Máximas populares à parte, a opinião tonta de uma galinácea e do seu séquito de galinholas vale o que vale, pois o Brasil esteve e está povoado de múltiplos indivíduos que merecem em absoluto a nossa admiração, pelas mais variadas razões. Além de que as relações entre dois povos irmãos não devem ser abaladas por episódios promíscuos e insignificantes desta índole. E, já agora, seria profícuo que os portugueses se preocupassem com o real e perdessem a mania de se masturbar psicologicamente com romances de cordel.

(imagem dos Pastéis de Belém)

2 comentários:

Jorge disse...

Não me espantou este episódio de mau gosto. Há quem não consiga pensar e respirar ao mesmo tempo, e a dita senhora é um bom exemplo. Olha que andou enrolada com um português mediático que também se julga mais culto e inteligente do que a realidade mostra. A estupidez será uma DST, ou cruzaram-se almas gémeas?
Bjocas

Kika disse...

Amigo, já tinha saudades das tuas mordidelas. Fazes concorrência ao Bicho! A das DST está bem apanhada. Entretanto, a parte mais gira foi a tirada do dito português, a quem também me referi antes de ter lido estas suas palavras: "É uma reacção provinciana e saloia dos portugueses. Somos um povo sem capacidade de humor e autocrítica. Há algum português que vá ao Brasil e não goze?" É claro que gozamos! Gozamos as praias, o clima, a comida, a diversão, a descoberta... Irra! Se calhar tens razão, são mesmo almas gémeas.
Bjocas