quarta-feira, agosto 15, 2007

A Senhora que limpa


A Senhora aparece duas vezes por semana, há alguns anos e esta parte, para limpar as escadas. É pequenina, como as portuguesas do antigamente, e tão franzina que parece que se pode desmoronar, mas limpa tudo devagarinho com ar compenetrado e diligente. Tem uns olhos escuros, circundados por olheiras permanentes, que nos observam como os cães meigos e anda sempre vestida de negro. Colecciona um imenso rol de lutos, familiares ou alheios, que não lhe permitem alterar a indumentária e lhe trazem prontamente água às pestanas. A sua idade é indefinida, mas a cara murcha e as mãos deformadas denotam as moléstias do trabalho diário, que principia às sete da manhã e acaba quando Deus quer. Graças à minha mania de associar as pessoas aos bichos, sempre que olho para ela vejo uma formiguita laboriosa. Por vezes não a encontro, pois não sou grande adepta de madrugar, mas oiço quase sempre a vassoura a arranhar a minha porta e o tapete a ser libertado do pó. Já me ocorreu que é uma maldade a Senhora não puder usar um aspirador em pleno século XXI, mas ela não parece importar-se com isso. Poupa vassouras, panos e esfregonas com uma tenacidade fora do comum e economiza nos detergentes, sempre presa à velha ideia de que desperdiçar é um pecado imperdoável. Também lustra as plantas com um enorme carinho, contando-lhes aquilo que os ouvidos dos condóminos se recusam a absorver. Estes passam por ela furtivamente e, com muita sorte, lançam um "Bdia!" resmungado entre dentes. Afinal fazem-se o mesmo, portanto não é de espantar.
Esta mulher podia ser como qualquer outra pessoa que desempenhasse uma função similar, mas de facto há tanto que a distingue! Uma vez soube, por acaso, a data dos meus anos e desde então deixa-me sempre um postalito na caixa do correio, escrito naquela caligrafia irregular e infantil típica das pessoas que fizeram a primária no seu tempo, com uma flor seca no interior. Enxota os cães que alçam a pata nas jantes do meu automóvel e depois relata-me a proeza com um ar macio mas orgulhoso. Faz sempre um comentário pueril à minha roupa enquanto me lança olhares embevecidos e se me vir a carregar tralhas quer por força ajudar. E lamenta quando saio à corrida para ir trabalhar porque não ressuscitei a tempo com o chinfrim dos dois despertadores em uníssono com o telemóvel, o qual entretanto foi captado pela ultrajada vizinhança que me rogou pragas maléficas.
Mas a Senhora não me premeia com tudo isto gratuitamente. O facto é que fui a única pessoa que se dignou conhecê-la quando me impingiram o magnífico cargo da administração do condomínio. Achei por bem ir ter com ela e inteirar-me do dia do pagamento e de outras chatices similares, já que ninguém me esclareceu por aí além sobre as minhas novas atribuições. Pois ficou encantada, para meu grande espanto, quase comovida mesmo. Confessou-me então que os meus antecessores lhe colocavam o salário num envelope lá na casinha dos arrumos, quando não se esqueciam e a deixavam à míngua durante alguns dias. E ela sem coragem de lhes ir pedir aquilo a que legitimamente tinha direito, apesar do transtorno que lhe causava. Irritou-me isso de tal maneira que, em caso de dúvida, até lhe pagava mais cedo para não me morder a consciência. E levava-lhe paninhos novos, que ela guardava num cantito porque os outros ainda não estavam rotos, tendo sempre o cuidado de lhe perguntar pela filha e pelo neto. Ou dava-lhe mais produtos para facilitar a limpeza e agilizar a seca. Mas breve percebi que, acima de tudo, o que a tocava a era eu tratá-la como igual, o que, à semelhança do pagamento, é uma vez mais um direito adquirido, algo que lhe assiste em pleno. Estou mesmo em crer que não somos sequer iguais, já que ela é certamente muito mais bondosa do que eu!

Mas de igualdades e direitos a Senhora entende muito pouco, ou não quer entender, e a minha maior surpresa aconteceu de facto há um tempo atrás. Encontrei-a a limpar a entrada às dez da manhã, o que não é usual. Perguntei-lhe se estava tudo bem e respondeu-me, com um sorriso entre tímido e matreiro, que sim, que aquilo até já eram metade das suas férias, daí o adiantado da hora. Como não entendi à primeira, ela explicou-me então que só estaria ausente durante duas semanas e acrescentou orgulhosa: "Este prédio pode lá estar um mês sem limpeza menina! Deus nos livre!" A menina (e não é que soa tão bem?!) abriu a boca até aos joelhos e perguntou: "Mas vai gozar essas férias depois, não? No Natal ou assim?". Retorquiu indignada: "Mas nem pensar! O trabalho vem em primeiro lugar e nas festas suja-se muito." Bem arenguei que a escada era uma treta e que o pessoal é que tinha que se preocupar em sujar menos e que a família é que estava realmente em primeiro lugar, para já não falar no descanso e na diversão e blá, blá, blá. Olhava-me com aquele ar benevolente com que se olham as crianças a dizer tolices, mas percebia-se que estava satisfeita com a minha indignação solidária. Desisti, dei-lhe uma palmadinha no ombro, chamei-lhe tonta e fui à vida. E ao fim de uns dias lá estava um autocolante amarelo, daqueles a que damos um nome arrevesado, a destacar-se no placard do condomínio. Nele informava que não viria durante quinze dias e que desejava a todos umas boas férias!
Muitas vezes penso com tristeza que o mundo ficará definitivamente mais pobre e hostil quando as pessoas como a Senhora nos abandonarem. É toda uma faixa etária com princípios, valores e educação similares, detentora de uma enorme nobreza de espírito e pródiga em pequenos gestos de delicadeza que, não tarda, vai deixar nas nossas existências um vazio impossível de preencher... E essas pessoas são também alguns elementos das nossas famílias, talvez aqueles que mais estimamos. Sinto uma teia fininha e gelada a apertar-me o coração quando penso nisso!

(foto Andy Bell)

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