Nos Verões, à semelhança do que ainda hoje se passa, muitos eram os que rumavam até ao Algarve, a Côte d'Azur nacional. Como não havia auto-estrada, a viagem alongava-se e era bem mais bonita. Sempre adorei ver desfilar paisagens e povoações pelos vidros do automóvel e, ao contrário dos que lamentam as distâncias a percorrer, gostava de viver num país maior e ainda mais discrepante em termos de relevo.
O Algarve nada tinha a ver com a selva contemporânea. Era um paraíso à beira-mar plantado, tranquilo, bastante desertificado e sem poluição. As praias onde agora se empilham os ilustres e os paparazzi, com os seus estacionamentos de sete euros e os seus restaurantes in de preços pornográficos, estavam praticamente desertas e proporcionavam uma genuína sensação de liberdade. Bastava descer as escarpas, escolher (que belo verbo!) um local aprazível junto às rochas ou debaixo das cabaninhas, colocar as toalhas na areia dourada e limpa e mergulhar na água transparente e mansa onde se viam peixitos. Havia tantas amêijoas, conquilhas e caranguejos que era impossível resistir ao apelo de os apanhar, ou às infinitas conchas e pedrinhas de múltiplos tons e formatos que eram o colar do mar. O cheiro da maresia era mais intenso, as cores mais vivas e brilhantes e os ruídos eram de facto os da natureza, adoçados pelo canto dos passarinhos. Éramos meia dúzia de aventureiros que saíam da rota habitual em busca desta felicidade, que então parecia um dado adquirido e agora não passa de uma miragem. E mesmo assim os poucos presentes acabavam por interagir ao longo do dia, partilhando sanduiches e falando de política, o assunto quente da época para gente jovem e progressista que gostava de ter um papel activo no rumo dos acontecimentos. As mulheres usavam aqueles óculos enormes que as aparentavam às moscas, e que entretanto voltaram a estar na moda, e protegiam os cabelos com óleo de coco e chapéus de palha glamorosos. Para nós havia bonés e touquinhas coloridas de algodão que, misturadas com as sardas, nos davam um ar de traquinice saudável.
Naquela altura as pessoas eram menos individualistas, por isso as famílias juntavam-se aos amigos e partiam de Lisboa em caravana nos carros atafulhados de bagagem e de gente. Os tejadilhos iam cheios de bricabraques presos à grade metálica por elásticos com anzol e as palas traseiras varriam depois o chão devido ao peso, fazendo coro com os rádios caprichosos que lançavam mais ruídos de batata frita do que música propriamente dita. Todos estes preparativos demoravam horas intermináveis, pelo que nós nos divertíamos a andar de bicicleta, a jogar às escondidas ou a atazanar os cães, até sermos cuidadosamente depositados num colo vago ou num cantito liberto. Ainda não havia a imposição do cinto ou das cadeirinhas, o que tornava tudo mais dinâmico e caloroso.
A primeira noite era sempre muito especial, pois o céu estrelado e a temperatura amena permitiam ceias ao ar livre e mergulhos fora de horas, privilégios que o quotidiano não nos proporcionava e pelos quais esperávamos o ano inteiro. O ar estava impregnado daquele cheiro doce e meio abaunilhado dos loendros, que até hoje associo sempre às terras que avistam África. Os quartos de outras eras arejavam entretanto, repletos da magia das coisas que já não existem: livros de adolescentes ingénuas e românticas, cartilhas escolares do tempo dos avós, jogos de dominó, de loto e de xadrez, balancinhas de cobre com pesos, santinhos daqueles que ficam verdes de noite e velam pelo nosso sono, camas de ferro com colchões de palha, o jarro com a bacia e a toalha de linho para espantar o sono pela manhã e tantos outros vestígios de vidas que se esfumaram deixando rasto. E havia ainda aquele momento fascinante em que eu seguia o tio Manuel para o ver tirar as dentaduras de gengivas enormes e vermelhas e escová-las com esmero. Na altura ele já tinha desistido de falar, mas os olhitos marotos e brilhantes riam-se para mim, deliciado com a minha cara de genuíno espanto perante uns dentes que saiam direitinhos da boca e a ela retornavam mais luzidios. Por mais vezes que assistisse àquele ritual, a verdade é que nunca me cansava.
Como todas as pessoas que estão caladas, o tio Manuel apercebia-se muito melhor do que se passava em seu redor e foi o único a descobrir que a alegria que trazíamos das excursões às amoras se devia mesmo aos medronhos quentes, as nossas primeiras experiências embriagantes com direito a caganeira, ressaca e tudo o mais! Nunca conheci ninguém que dialogasse assim com os olhos. Era o seu dom e talvez por isso não se desse ao trabalho de usar a língua e os dentes ambulantes, ou talvez porque se tivesse cansado de retorquir sempre que era atropelado pelo discurso da cara metade, quando não pela peruca que dela saltava com a ira desmedida. Para já não falar nos delírios do cunhado que, quando amuava por uma qualquer razão incompreensível para comuns mortais, abria a portada e metia de fininho "o pé na greta", como ele dizia, para ter uma crise de reumático e desencantar um motivo válido para ser um resmungão de marca maior. Grande personagem, que uma vez se ia afogando para salvar uma peúga que o mar teimou em arrancar do tal pé reumatoso, que podia arejar na greta mas que não demolhava na água salgada sem capota. Lá foi o meu pai arrancá-lo às ondas traiçoeiras da Adraga, pois isto infelizmente não foi no Algarve, mas ele nunca lhe perdoou a perda "do peúgo" (no seu entender, meia de homem não podia ter um nome feminino!). Enfim, era perfeitamente compreensível que o tio Manuel não quisesse falar e isso tornava-o muito mais interessante aos nossos olhos, pois aquela geração de tios-avós e avós, que também eram meus por empréstimo e que ninguém desterrava para longe, eram bizarros e protectores quanto baste. E só ele mantinha aquele espírito de criança que o fazia cúmplice natural das nossas traquinices. Só ele e o meu pai não se zangaram, por exemplo, quando eu resolvi cantar pela rua fora com um melão à cabeça que era quase do meu tamanho. Vínhamos das compras e espontaneamente decidi extravasar a alegria e armar-me aos cágados, visto que até tinha a Becas, já mais velha, a apoiar a marosca. Mas o melão não era bem como uma bola de râguebi e, num rodopio mais elaborado acompanhado de uma nota mais esganiçada, escorregou-me das mãos e escaqueirou-se no empedrado. Caramba, era um belo melão sumarento e ali se findou ingloriamente, não sem me dar o merecido banho, claro! Por mais consciente que estivesse do castigo que se ia seguir, a verdade é que tive um dos maiores ataques de riso da minha vida, daqueles que lavam a alma e nunca mais se esquecem.
Era assim o Algarve da minha infância, onde passava duas ou três semanas antes de ir para o norte, feliz pelo contraste entre estes dois mundos dentro de um mesmo e pequeno país e dentro da minha pequena vida. Era um Algarve que já só existe na minha memória, mas que me proporcionou um manancial de vivências fantásticas e que associo a um contexto paradisíaco que se perdeu para sempre devido ao inevitável progresso e, acima de tudo, à estupidez dos seres humanos. Bom, Adão e Eva também conseguiram dar cabo do Paraíso e eram só dois!
(foto Shazeen Samad)
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