sábado, agosto 25, 2007

Nostalgia de Verão


Nos Verões, à semelhança do que ainda hoje se passa, muitos eram os que rumavam até ao Algarve, a Côte d'Azur nacional. Como não havia auto-estrada, a viagem alongava-se e era bem mais bonita. Sempre adorei ver desfilar paisagens e povoações pelos vidros do automóvel e, ao contrário dos que lamentam as distâncias a percorrer, gostava de viver num país maior e ainda mais discrepante em termos de relevo.
O Algarve nada tinha a ver com a selva contemporânea. Era um paraíso à beira-mar plantado, tranquilo, bastante desertificado
e sem poluição. As praias onde agora se empilham os ilustres e os paparazzi, com os seus estacionamentos de sete euros e os seus restaurantes in de preços pornográficos, estavam praticamente desertas e proporcionavam uma genuína sensação de liberdade. Bastava descer as escarpas, escolher (que belo verbo!) um local aprazível junto às rochas ou debaixo das cabaninhas, colocar as toalhas na areia dourada e limpa e mergulhar na água transparente e mansa onde se viam peixitos. Havia tantas amêijoas, conquilhas e caranguejos que era impossível resistir ao apelo de os apanhar, ou às infinitas conchas e pedrinhas de múltiplos tons e formatos que eram o colar do mar. O cheiro da maresia era mais intenso, as cores mais vivas e brilhantes e os ruídos eram de facto os da natureza, adoçados pelo canto dos passarinhos. Éramos meia dúzia de aventureiros que saíam da rota habitual em busca desta felicidade, que então parecia um dado adquirido e agora não passa de uma miragem. E mesmo assim os poucos presentes acabavam por interagir ao longo do dia, partilhando sanduiches e falando de política, o assunto quente da época para gente jovem e progressista que gostava de ter um papel activo no rumo dos acontecimentos. As mulheres usavam aqueles óculos enormes que as aparentavam às moscas, e que entretanto voltaram a estar na moda, e protegiam os cabelos com óleo de coco e chapéus de palha glamorosos. Para nós havia bonés e touquinhas coloridas de algodão que, misturadas com as sardas, nos davam um ar de traquinice saudável.
Naquela altura as pessoas eram menos individualistas, por isso as famílias juntavam-se aos amigos e partiam de Lisboa em caravana nos carros atafulhados de bagagem e de gente. Os tejadilhos iam cheios de bricabraques presos à grade metálica por elásticos com anzol e as palas traseiras varriam depois o chão devido ao peso, fazendo coro com os rádios caprichosos que lançavam mais ruídos de batata frita do que música propriamente dita. Todos estes preparativos demoravam horas intermináveis, pelo que nós nos divertíamos a andar de bicicleta, a jogar às escondidas ou a atazanar os cães, até sermos cuidadosamente depositados num colo vago ou num cantito liberto. Ainda não havia a imposição do cinto ou das cadeirinhas, o que tornava tudo mais dinâmico e caloroso.
A primeira noite era sempre muito especial, pois o céu estrelado e a temperatura amena permitiam ceias ao ar livre e mergulhos fora de horas, privilégios que o quotidiano não nos proporcionava e pelos quais esperávamos o ano inteiro. O ar estava impregnado daquele cheiro doce e meio abaunilhado dos loendros, que até hoje associo sempre às terras que avistam África. Os quartos de outras eras arejavam entretanto, repletos da magia das coisas que já não existem: livros de adolescentes ingénuas e românticas, cartilhas escolares do tempo dos avós, jogos de dominó, de loto e de xadrez, balancinhas de cobre com pesos, santinhos daqueles que ficam verdes de noite e velam pelo nosso sono, camas de ferro com colchões de palha, o jarro com a bacia e a toalha de linho para espantar o sono pela manhã e tantos outros vestígios de vidas que se esfumaram deixando rasto. E havia ainda aquele momento fascinante em que eu seguia o tio Manuel para o ver tirar as dentaduras de gengivas enormes e vermelhas e escová-las com esmero. Na altura ele já tinha desistido de falar, mas os olhitos marotos e brilhantes riam-se para mim, deliciado com a minha cara de genuíno espanto perante uns dentes que saiam direitinhos da boca e a ela retornavam mais luzidios. Por mais vezes que assistisse àquele ritual, a verdade é que nunca me cansava.
Como todas as pessoas que estão caladas, o tio Manuel apercebia-se muito melhor do que se passava em seu redor e foi o único a descobrir que a alegria que trazíamos das excursões às amoras se devia mesmo aos medronhos quentes, as nossas primeiras experiências embriagantes com direito a caganeira, ressaca e tudo o mais! Nunca conheci ninguém que dialogasse assim com os olhos. Era o seu dom e talvez por isso não se desse ao trabalho de usar a língua e os dentes ambulantes, ou talvez porque se tivesse cansado de retorquir sempre que era atropelado pelo discurso da cara metade, quando não pela peruca que dela saltava com a ira desmedida. Para já não falar nos delírios do cunhado que, quando amuava por uma qualquer razão incompreensível para comuns mortais, abria a portada e metia de fininho "o pé na greta", como ele dizia, para ter uma crise de reumático e desencantar um motivo válido para ser um resmungão de marca maior. Grande personagem, que uma vez se ia afogando para salvar uma peúga que o mar teimou em arrancar do tal pé reumatoso, que podia arejar na greta mas que não demolhava na água salgada sem capota. Lá foi o meu pai arrancá-lo às ondas traiçoeiras da Adraga, pois isto infelizmente não foi no Algarve, mas ele nunca lhe perdoou a perda "do peúgo" (no seu entender, meia de homem não podia ter um nome feminino!). Enfim, era perfeitamente compreensível que o tio Manuel não quisesse falar e isso tornava-o muito mais interessante aos nossos olhos, pois aquela geração de tios-avós e avós, que também eram meus por empréstimo e que ninguém desterrava para longe, eram bizarros e protectores quanto baste. E só ele mantinha aquele espírito de criança que o fazia cúmplice natural das nossas traquinices. Só ele e o meu pai não se zangaram, por exemplo, quando eu resolvi cantar pela rua fora com um melão à cabeça que era quase do meu tamanho. Vínhamos das compras e espontaneamente decidi extravasar a alegria e armar-me aos cágados, visto que até tinha a Becas, já mais velha, a apoiar a marosca. Mas o melão não era bem como uma bola de râguebi e, num rodopio mais elaborado acompanhado de uma nota mais esganiçada, escorregou-me das mãos e escaqueirou-se no empedrado. Caramba, era um belo melão sumarento e ali se findou ingloriamente, não sem me dar o merecido banho, claro! Por mais consciente que estivesse do castigo que se ia seguir, a verdade é que tive um dos maiores ataques de riso da minha vida, daqueles que lavam a alma e nunca mais se esquecem.
Era assim o Algarve da minha infância, onde passava duas ou três semanas antes de ir para o norte, feliz pelo contraste entre estes dois mundos dentro de um mesmo e pequeno país e dentro da minha pequena vida. Era um Algarve que já só existe na minha memória, mas que me proporcionou um manancial de vivências fantásticas e que associo a um contexto paradisíaco que se perdeu para sempre devido ao inevitável progresso e, acima de tudo, à estupidez dos seres humanos. Bom, Adão e Eva também conseguiram dar cabo do Paraíso e eram só dois!

(foto Shazeen Samad)

terça-feira, agosto 21, 2007

Copérnico cubista

Um amigo meu esteve recentemente em Madrid e contava-me entusiasticamente as suas impressões da capital espanhola e o itinerário cultural que tinha feito. Como é mais dado à diversão do que à cultura, notava-se que estava orgulhoso por, desta feita, ter calcorreado mais museus do que discotecas. A dado momento referiu a visita ao Centro de Arte Moderna Reina Sofia como um dos pontos altos da viagem, gabando acima de tudo o quadro Copérnico. Bom, fiquei surpresa mas achei por bem não me precipitar e comecei a rever mentalmente alguns dos pintores cujas obras figuram neste espaço e os nomes das mais emblemáticas. Entretanto ele continuava a nomear enlevadamente a tela Copérnico, as suas consideráveis dimensões, o desespero contido nas imagens e blá, blá, blá, enquanto eu pensava "Caramba, o Copérnico foi astrónomo, matemático e muitas outras coisas, mas por que diabos estará retratado numa tela de um museu de arte moderna?! E desespero, só se for devido à teoria heliocêntrica não ser evidente para os seus contemporâneos. E quem é que o pintou?!" E de repente, pela descrição do quadro e pela vaga similitude fonética, acendeu-se a lâmpada na minha cabeça! "Ouve, tu estás a falar da Guernica do Picasso, meu cromo!" Altas gargalhadas, desculpas com o adiantado da hora, o vinho do jantar e os posteriores digestivos. Bem, Copérnico certamente daria pulos de alegria na cova se figurasse na parede pelo punho de Pablo Picasso!

(quadro de Pablo Picasso, Guernica)

Fogo que arde e se vê


Lamentavelmente, os fogos que todos os anos dizimam hectares da nossa área florestal não são artificiais, não proporcionam magníficas imagens, nem estão à mercê do nosso controle. O excesso de calor costuma ser o álibi usual, contudo a agência Lusa reportou que quase seiscentos bombeiros e mais de cento e sessenta viaturas participavam no combate aos quatro incêndios de maiores dimensões que lavravam hoje ao final da tarde em Portugal, segundo o último balanço da Autoridade Nacional de Protecção Civil.
Por mais medidas que possam ser implementadas, a verdade é que só deixarão de existir incêndios quando todos nós tomarmos as necessárias precauções nesse sentido. À semelhança da higiene pública ou da reciclagem, também a preservação do meio ambiente é um princípio que tem que ser assimilado e praticado pelos cidadãos, na certeza de que a floresta é, em última instância, um dos maiores atractivos do nosso país. E apesar de continuarmos a não retirar dividendos da nossa orla costeira nem das nossas magníficas paisagens, convém-nos pelo menos preservá-las, na esperança de que um dia haja governantes dignos desse nome que revertam a situação. Isto se os que agora autorizam nova devastação em áreas protegidas da costa algarvia, com os consequentes atentados arquitectónicos que tal medida comporta, deixarem alguma coisa de pé... Se somos cúmplices por permiti-lo, não o sejamos pela nossa negligência!

(foto Jez Coulson)

Sintonia


Às vezes tentamos ter o discurso apropriado no momento exacto e o nosso esforço é inútil: não há reciprocidade, nem compreensão da mensagem transmitida. Outras vezes, espontaneamente, tudo flui de forma adequada: fazemos-nos entender e faz-se luz! As peças do puzzle encaixam-se temporariamente na perfeição, como uma partitura de música clássica em que diferentes instrumentos dialogam em sintonia. São estas ocasiões que nos fazem constatar que vale a pena interagir sem receios e acreditar numa harmonia improvável entre universos únicos e díspares.
Um dia a seguir ao outro: eis a chave da comunicação!

(foto Frank Boenigk)

quarta-feira, agosto 15, 2007

Depósito de pastilhas elásticas


Ainda não chegou a Portugal, mas faz cá muita falta! E até tem um grafismo apelativo que contribui para alegrar o ambiente e melhorar a estética das ruas. Pior do que uma pedra no sapato, que facilmente se retira, é uma pastilha elástica vinda inadvertidamente a reboque colar-se na carpete da sala!
Resta saber se esta medida resultaria ou se seria como os contentores para a caca dos canídeos, que permanecem limpinhos enquanto as ruas se transformam em autênticos campos minados. É triste ter que andar sempre de olhos no chão para não enfiar o pé na bosta! Dizem que dá sorte, mas a verdade é que ninguém a quer pisar, nem há quem se orgulhe de ruas que são autênticos WC de cães.

A Senhora que limpa


A Senhora aparece duas vezes por semana, há alguns anos e esta parte, para limpar as escadas. É pequenina, como as portuguesas do antigamente, e tão franzina que parece que se pode desmoronar, mas limpa tudo devagarinho com ar compenetrado e diligente. Tem uns olhos escuros, circundados por olheiras permanentes, que nos observam como os cães meigos e anda sempre vestida de negro. Colecciona um imenso rol de lutos, familiares ou alheios, que não lhe permitem alterar a indumentária e lhe trazem prontamente água às pestanas. A sua idade é indefinida, mas a cara murcha e as mãos deformadas denotam as moléstias do trabalho diário, que principia às sete da manhã e acaba quando Deus quer. Graças à minha mania de associar as pessoas aos bichos, sempre que olho para ela vejo uma formiguita laboriosa. Por vezes não a encontro, pois não sou grande adepta de madrugar, mas oiço quase sempre a vassoura a arranhar a minha porta e o tapete a ser libertado do pó. Já me ocorreu que é uma maldade a Senhora não puder usar um aspirador em pleno século XXI, mas ela não parece importar-se com isso. Poupa vassouras, panos e esfregonas com uma tenacidade fora do comum e economiza nos detergentes, sempre presa à velha ideia de que desperdiçar é um pecado imperdoável. Também lustra as plantas com um enorme carinho, contando-lhes aquilo que os ouvidos dos condóminos se recusam a absorver. Estes passam por ela furtivamente e, com muita sorte, lançam um "Bdia!" resmungado entre dentes. Afinal fazem-se o mesmo, portanto não é de espantar.
Esta mulher podia ser como qualquer outra pessoa que desempenhasse uma função similar, mas de facto há tanto que a distingue! Uma vez soube, por acaso, a data dos meus anos e desde então deixa-me sempre um postalito na caixa do correio, escrito naquela caligrafia irregular e infantil típica das pessoas que fizeram a primária no seu tempo, com uma flor seca no interior. Enxota os cães que alçam a pata nas jantes do meu automóvel e depois relata-me a proeza com um ar macio mas orgulhoso. Faz sempre um comentário pueril à minha roupa enquanto me lança olhares embevecidos e se me vir a carregar tralhas quer por força ajudar. E lamenta quando saio à corrida para ir trabalhar porque não ressuscitei a tempo com o chinfrim dos dois despertadores em uníssono com o telemóvel, o qual entretanto foi captado pela ultrajada vizinhança que me rogou pragas maléficas.
Mas a Senhora não me premeia com tudo isto gratuitamente. O facto é que fui a única pessoa que se dignou conhecê-la quando me impingiram o magnífico cargo da administração do condomínio. Achei por bem ir ter com ela e inteirar-me do dia do pagamento e de outras chatices similares, já que ninguém me esclareceu por aí além sobre as minhas novas atribuições. Pois ficou encantada, para meu grande espanto, quase comovida mesmo. Confessou-me então que os meus antecessores lhe colocavam o salário num envelope lá na casinha dos arrumos, quando não se esqueciam e a deixavam à míngua durante alguns dias. E ela sem coragem de lhes ir pedir aquilo a que legitimamente tinha direito, apesar do transtorno que lhe causava. Irritou-me isso de tal maneira que, em caso de dúvida, até lhe pagava mais cedo para não me morder a consciência. E levava-lhe paninhos novos, que ela guardava num cantito porque os outros ainda não estavam rotos, tendo sempre o cuidado de lhe perguntar pela filha e pelo neto. Ou dava-lhe mais produtos para facilitar a limpeza e agilizar a seca. Mas breve percebi que, acima de tudo, o que a tocava a era eu tratá-la como igual, o que, à semelhança do pagamento, é uma vez mais um direito adquirido, algo que lhe assiste em pleno. Estou mesmo em crer que não somos sequer iguais, já que ela é certamente muito mais bondosa do que eu!

Mas de igualdades e direitos a Senhora entende muito pouco, ou não quer entender, e a minha maior surpresa aconteceu de facto há um tempo atrás. Encontrei-a a limpar a entrada às dez da manhã, o que não é usual. Perguntei-lhe se estava tudo bem e respondeu-me, com um sorriso entre tímido e matreiro, que sim, que aquilo até já eram metade das suas férias, daí o adiantado da hora. Como não entendi à primeira, ela explicou-me então que só estaria ausente durante duas semanas e acrescentou orgulhosa: "Este prédio pode lá estar um mês sem limpeza menina! Deus nos livre!" A menina (e não é que soa tão bem?!) abriu a boca até aos joelhos e perguntou: "Mas vai gozar essas férias depois, não? No Natal ou assim?". Retorquiu indignada: "Mas nem pensar! O trabalho vem em primeiro lugar e nas festas suja-se muito." Bem arenguei que a escada era uma treta e que o pessoal é que tinha que se preocupar em sujar menos e que a família é que estava realmente em primeiro lugar, para já não falar no descanso e na diversão e blá, blá, blá. Olhava-me com aquele ar benevolente com que se olham as crianças a dizer tolices, mas percebia-se que estava satisfeita com a minha indignação solidária. Desisti, dei-lhe uma palmadinha no ombro, chamei-lhe tonta e fui à vida. E ao fim de uns dias lá estava um autocolante amarelo, daqueles a que damos um nome arrevesado, a destacar-se no placard do condomínio. Nele informava que não viria durante quinze dias e que desejava a todos umas boas férias!
Muitas vezes penso com tristeza que o mundo ficará definitivamente mais pobre e hostil quando as pessoas como a Senhora nos abandonarem. É toda uma faixa etária com princípios, valores e educação similares, detentora de uma enorme nobreza de espírito e pródiga em pequenos gestos de delicadeza que, não tarda, vai deixar nas nossas existências um vazio impossível de preencher... E essas pessoas são também alguns elementos das nossas famílias, talvez aqueles que mais estimamos. Sinto uma teia fininha e gelada a apertar-me o coração quando penso nisso!

(foto Andy Bell)

Transitando


Apesar de todos os esforços que vêm sendo sucessivamente envidados, a sinistralidade em Portugal mantém-se similar. É provável que os acidentes ocasionados pelo excesso de álcool tenham diminuído, o que é positivo e louvável! Mas aqueles que se devem às inconsciências praticadas pelo excesso de frustração quotidiana, de testosterona mal direccionada ou de aselhice, só podem diminuir com civismo e bom-senso. Estes dois princípios deviam ser aliás bem incutidos nas escolas de condução aos aspirantes a encartados.
As últimas medidas implementadas para aumentar a segurança rodoviária têm-nos dado porém muito que pensar. A cidade está minada de radares, de câmaras de vigilância, de mil olhos de vidro que nos perseguem por toda a parte. Resta saber se isso é totalmente positivo ou se, pelo contrário, não esconde algumas armadilhas perniciosas. Quantos de nós, por exemplo, não nos distraímos perigosamente a conduzir para olhar os postes de iluminação na tentativa de vislumbrar o camuflado olho maléfico? E que fazemos naqueles dias em que acordamos tarde e estamos atrasados para chegar ao trabalho? Sujeitamos-nos às duras consequências inerentes ou, pelo contrário, arriscamos a pesada multa? E os taxistas, será que ainda obedecem às velhas máximas "Leve-me ao aeroporto na gáspea!" ou "Siga aquele carro!" sem pestanejar, ou será que nos vão comunicar rispidamente "É você que paga a multa!"? Mais sério ainda será quando tivermos que ir de urgência para o hospital. Como proceder nesta situação? Colocar um lenço branco na janela ou ter à mão uma tabuleta a dizer "Emergência médica"?! Será que as câmaras captam e o juiz nos perdoa? Ou será que nos vai dizer que era obrigatório manter os limites de velocidade a qualquer preço? E no caso de morrermos, a família herdará a contrafacção? Ainda não se conhecem respostas para estas questões, mas que são pertinentes não restam dúvidas.
Parece legítimo então que nos questionemos se estas duras imposições aos limites de velocidade visam realmente proteger os cidadãos ou se não são apenas mais uma das múltiplas estratégias de engordamento dos cofres do Estado. Aqueles cofres que estão sempre vazios apesar dos milhares pagos em inúmeros impostos, contribuições de toda a ordem, taxas diversificadas, multas de todos os tipos, etc, etc. Que acidentes mortais ocorreram em Belém, à beira-rio, para termos que circular a 50km à hora debaixo da estreita vigilância dos radares? Qual é a diferença entre a auto-estrada Lisboa-Cascais e o IC19 para neste termos que circular a 100 ou a 90 consoante os troços? Será porque este tem mais faixas com melhor piso?! Não se compreende... Para já não referir que a constante alteração dos limites de velocidade dentro dos mesmos itinerários nos baralham o cérebro e nos fazem andar sempre à cata de sinalização e de câmaras malignas. Se calhar um dia vão-nos pôr uma câmara em casa para precaver as nossas sandices e minorar os terríveis desperdícios de papel higiénico, vigiar o equilíbrio calórico das nossas refeições de modo a prevenir o excesso de colesterol e poupar nas doenças inerentes ou vigiar o uso de preservativos de forma a precaver o impacto ambiental dos mesmos quando atirados para a sanita ou os prejuízos da sua não utilização devido à contracção de DST, entre tantos outros itens de uma lista infindável que receberemos via correio electrónico. E pensar que os Estado Unidos ainda não assinaram o Protocolo de Quioto, caramba!
Seguindo a boa tradição deste país - onde há lombas nas subidas, passadeiras a seguir a curvas num convite à matança, ausência de sinalização ou sinalização inadequada, buracos do tamanho de crateras sem protecção, semáforos que, quando não electrocutam os peões, obedecem aos seus toques sem intervalos periódicos provocando engarrafamentos descomunais, buracos nas vedações das auto-estradas que permitem a livre circulação de pessoas e animais e outras bizarrias afins (o rol é longo!) - vão pulular agora, que nem cogumelos, painéis similares ao da imagem: proibida a circulação de bicicletas. Será a última medida inovadora no combate ao défice económico da nação, ao qual são alheios a má gestão, a incompetência da classe dirigente, os múltiplos cargos fantasma de direcção de empresas públicas como a Epul com vencimentos milionários ou o despesismo das alterações de quadros aquando das mudanças do Governo, vulgo jobs for the boys, para citar apenas umas ínfimas parcelas de uma lista gigantesca e formalmente comprovada.
Abaixo o único veículo em que o animal puxa sentado! Bicicletas não andam depressa, nem pagam multas chorudas!

(fotos Andy Bell)

terça-feira, agosto 14, 2007

Homenagem a Miguel Torga


Comunicado

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.


Sísifo

Recomeça....

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...


Apelo

Porque
não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência....

Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o limite dos mortais.


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É impossível deixar passar em branco o centenário do nascimento de um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos. Torga foi não só um artesão exímio da língua pátria, como também um indivíduo de grande profundidade intelectual. O seu forte pendor telúrico permite-nos um contacto privilegiado com as nossas raízes ancestrais e fortalece o elo que nos une à terra mãe lusitana.
A escolha destes três poemas não foi inocente, já que a sua contemporaneidade é notória. O povo trabalha no duro para manter uma parca qualidade de vida (a mais baixa da Comunidade Europeia segundo estatísticas ontem divulgadas, consequência de sermos os mais mal pagos quando, ironicamente, somos aqueles que trabalham até mais tarde) e não tem ninguém que lhe valha. Haja saudinha - mesmo com listas de espera de anos para intervenções cirúrgicas, encerramentos constantes de centros de saúde e notícias assustadoras de negligência médica nos hospitais - pois só ela nos permite sobreviver. E sonhar com dias melhores é tudo o que nos resta para não desalentar quando olhamos para o caminho duro do futuro, sendo que liberdade, pelo menos de expressão, é algo que vemos esfumar-se progressivamente no horizonte. No fundo, estamos todos demasiado amargurados e descrentes para acreditar em dias melhores, para continuar a ter paciência para apertar o cinto à espera de um futuro quimérico e intangível. Queremos mais e melhor hoje, aqui, já, neste momento!
Saliente-se que foi notada a ausência de membros do Governo nas comemorações deste centenário. Pobres trabalhadores competentes e incansáveis, os senhores estão a banhos no sul ou a viajar pelo estrangeiro, como é justo e legítimo. Só mentes deturpadas poderiam inferir que o Governo se está a borrifar para a cultura ou para um homem que é motivo de orgulho para este país, um escritor ímpar que ajudou a dignificar a sua imagem, cada dia mais pobre, e as suas letras, por vezes tão abastardadas!

sábado, agosto 11, 2007

Pedrada no charco


Quem folhear o Público deste sábado depara-se com três citações retiradas da blogosfera lusa relativas a Pinto da Costa e às suas mais recentes declarações televisivas. Nada de novo! À semelhança do processo da Casa Pia, também o caso Apito Dourado vai enxugando os cofres da nação sem que se aviste um desfecho próximo ou se comecem a apurar meros factos. Por mais lamentável que seja, é assim que se processa a justiça neste país de brandos costumes, onde os portugueses não dominam o conceito de cidadania já assimilado pela maioria dos europeus, nem exercem os seus legítimos direitos no que concerne à intervenção social e política. Muito pelo contrário, são antes facilmente intimidados por políticos prepotentes e manipulados por manobras de diversão sensacionalista, acabando até por gastar os seus magros trocados na aquisição de livros telenovelescos sobre a intimidade medíocre de figuras de pretenso interesse público. O Big Brother veio mesmo para ficar! No meio de tanta macacada, e já que as questões legais permanecem no limbo, o povo entretém-se com a novela da vida real, com o filão inesgotável do insulto reles e do diz que disse das comadres.
Resta-nos então reflectir com um mínimo de lucidez sobre esta peça burlesca "Dirigente do FCP versus Ex-Alternadeira" e chamar de uma vez os bois pelos nomes, revendo sucintamente o que se passou.
O sr. Pinto da Costa apaixonou-se um dia por uma mulher consideravelmente mais jovem e de reputação duvidosa, sendo contudo detentor privilegiado de um amplo conhecimento do seu passado e do seu carácter. Não obstante, descartou-se da legítima, que na altura não se coibiu de espernear sonoramente na comunicação social, e presenteou a sua amada com o estatuto de primeira dama. Pavoneou-se com a dita, partilhou cama e confidências, permitiu que esta se imiscuísse nos meandros da sua nebulosa existência. Daí inferirmos que de paixão se tratava, já que não estamos perante nenhum anjinho! Nos tempos áureos, o magnífico casal fervilhava nas páginas da imprensa cor-de-rosa, aparecendo em eventos sociais de relevo, ou bronzeando o esqueleto nas praias do país na companhia dos filhinhos da moça ou tão simplesmente assistindo enlevadamente aos jogos da equipa azul e branca. E, ainda de acordo com estas credibilíssimas fontes, Carolina era uma lady zelosa e Jorge Nuno um senhor que rejuvenescia. No entanto, com o passar do tempo e o estalar do ténue verniz da dita jovem, a relação começou a azedar, tendo para isso contribuído em larga escala a suposta infidelidade da mesma. Não deixa de ser curioso que um indivíduo em cujo currículo público consta pelo menos um caso de airosa troca de companheiras se mostre tão sensível e intransigente perante uma situação análoga, mas isso é já do domínio da flexibilidade ou do egoísmo de cada um. Em suma, a bola de neve não mais parou de rolar e avolumar-se, até culminar na consequente ruptura dos pombinhos e posterior publicação de uma das mais nítidas compilações de javardices redigidas em língua portuguesa. Como se já não nos bastassem as escritoras de cordel e o João Pedro George! Que saudades de Almada Negreiros e do Manifesto Anti-Dantas... Bons tempos!
Não vale pois a pena determo-nos afincadamente na esgrima verbal que este par encetou nos últimos tempos, nem tão pouco dissertar sobre as aquisições literárias dos portugueses ou sobre as prioridades da comunicação social. Ainda assim é sui generis que um indivíduo acutilante, de resposta pronta e aparentemente superior como o sr. Pinto da Costa, cometa a insanidade de dar o flanco, de não camuflar a sua mágoa perante o facto de Portugal saber que sofre de flatulências e, finalmente, de alinhar sem pejo nesta absurda troca de galhardetes de baixo nível. O que é que tem lucrado? De que forma tem reabilitado a sua imagem? Já a ilustre desconhecida que saltou para a ribalta, ganhou um mediatismo com o qual jamais havia sonhado e, não contente com a proeza, trouxe ainda a família a reboque. Proporcionou-nos o inefável deleite de privar com o seu ilustre progenitor, um vulto de relevo no panorama nacional com direito já a entrevista no noticiário das oito, que defendeu aguerridamente esta cria sua prodigiosa. Lamentável é que para tal tenha precisado de lançar a cria desvalida na fogueira da devassa pública da intimidade! De facto o país ficou mais descansado quando soube que o indivíduo repudia esta filha tresloucada que tem borboletado em vão pelas instituições psiquiátricas do Serviço Nacional de Saúde, enquanto louva a que, desolada com a ascensão de prostituta a primeira dama, morde a mão que lhe foi estendida e enfia o esterco no ventilador. Pelos vistos esta última característica é genética (ao contrário da maioria dos portugueses, as moças devem ter bons dentes!) já que Ana havia feito outro tanto ao surgir, novamente em horário nobre, a trincar na sua gémea Carolina a quem teoricamente deve, no mínimo, favores monetários. Tudo muito edificante, sem dúvida!
Para finalizar (?!) em cheio, aparece Pinto da Costa, em declarações recentes, dizendo: "Que credibilidade merece uma mulher que, (...) aos dezoito anos, e sem casamento, teve dois filhos?" A ira toldou-lhe certamente a inteligência pois esta foi afinal uma das afirmações mais abonatórias que poderia ter proferido sobre a ex-companheira. Vamos por partes. Que credibilidade merece um sujeito que, na posse desta e de tantas outras informações análogas, partilha enlevada e publicamente a existência com a dita mulher para posteriormente, atingido por uma imensa dor de corno, transformar as suas anteriores virtudes em incontornáveis e monstruosos defeitos? Por outro lado, que moral imaculada é a sua, que passado é o seu, para vir fazer a sagrada apologia do casamento? Ao que consta não respeitou o seu primeiro enlace matrimonial, nem se coibiu de ajudar a pôr fim ao de terceiros. Por último, quem é que pode deixar de sentir admiração por uma mulher que tem a coragem de colocar dois filhos neste mundo com tão pouca idade? Mereceria então mais credibilidade se tivesse optado por se livrar deles?! E já agora, alguém se preocupou, o sr. Jorge Nuno incluído, com os malefícios que todo este desvario provocou nas ditas crianças envolvidas? Tanto quanto se preocuparam na altura com os filhos do arquitecto Taveira, por exemplo, aqueles que revelaram a sua arrevesada intimidade. Suprema hipocrisia! Mundo cão!
Em suma, o país atravessa uma crise descomunal e quase todos enfrentamos problemas demasiado graves nas nossas vidas a nível financeiro, profissional, educativo e na área da saúde para nos deixarmos embalar com cantigas de escárnio e maldizer. Basta de engodos! Chega de futebol, putas e vinho verde!

(foto Martin Andreasen)