terça-feira, outubro 23, 2007

Zás, tudo ao léu!


As telenovelas da vida real estão, mais do que nunca, em alta!
Ora principiou este bizarro fenómeno, se bem nos recordamos, pela clausura de um bando de toscos num barracão comunal minado de câmaras, onde inventavam tretas impensáveis para se entreter enquanto chiavam pela ordem de soltura. Mimoseavam as audiências com desvaires de polichinelo ou de estivador, abençoados entretanto pelas lágrimas da casamenteira apresentadora, e deliciavam o povo quando sucumbiam aos encantos alheios ou próprios debaixo das mantas.
A coisa foi avançando, que a televisão está mais do que nunca ao serviço da cultura e da intelectualização das massas, e vieram depois os pseudo-vips em versão rural ou em paródias circenses, as ditas belas e os pretensos iluminados a usufruir já de instalações mais condignas e outras quantas pérolas similares revistas e incrementadas. Hoje, e assim o exige a actual guerra de audiências, temos os noivos de Portugal e os aspirantes a vedetas do nacional cançonetismo em dose dupla. Três canais em plena sintonia! É lindo!
Como qualquer fenómeno sociológico, os reality shows merecem então que nos detenhamos a apreciá-los nas suas múltiplas facetas. Comecemos pelo público, esses vampiros que se alimentam da vida alheia e que querem figurar por escassos segundos que seja na caixinha mágica do vizinho, aquele sacana emproado que, esperam, se roerá de inveja. Quem poderá algum dia olvidar, por exemplo, os cromos anónimos com que o Big Brother nos presenteou à entrada do estúdio dos directos e cujas performances rivalizavam com as dos próprios concorrentes? Este foi o primeiro contributo de vulto para o espólio luso de improváveis personagens-tipo à portuguesa, ultrapassadas tão somente pelo nosso Emplastro, na versão popular, ou pelo Castelo Branco, na versão pretenso vip!
Não esqueçamos entretanto as famílias, aquelas pessoas solidárias que se despem por amor às crias, de forma desprendida e aceitando o pesado fardo da passageira notoriedade de forma estóica. Voltando ao Big Brother, pois foi de facto paradigmático, lembremos os progenitores cujos confrontos mútuos e respectivos impropérios nos permitiam melhor compreender a génese dos carácteres dos rebentos. Em dias de menos sorte, em que não havia rixa ou palavrão, era a devassa que atingia o rubro: a cor do primeiro cocó dos meninos, a primeira mecha de cabelinho ostentada no cordão de ouro ao pescoço, o primeiro castigo por lhes terem fanado a guita do porta-moedas ou a primeira vez que chegaram a roupa ao pêlo à namorada. Entrava de seguida a comunicação social na paródia, como é hábito e normal, e tudo era dissecado e desmultiplicado em revistas foleiras que acorriam sequiosas de mais caca para lançar no ventilador, entrevistando para o efeito todo o bicho careta que conhecera as ditas criaturas nesta ou em anteriores encarnações. Assim se deliciam as sopeiras ávidas dos podres alheios, quiçá para melhor lhes cheirarem os seus, enquanto todos os envolvidos rejubilam acreditando-se genuínas vedetas. E assim se produziram surreais fenómenos televisivos extra-concurso, como a abertura do noticiário nacional com o pontapé do Marco na Coisinha ou o charro fumado pelo Garnisé. Surge então mais uma almejada mudança, na esteira das medidas progressistas, desta feita na história das notícias televisivas: a sua credibilidade, depois destes desvaires sem precedentes, nunca mais foi a mesma!
Eis senão que hoje, tantos anos volvidos, a história se vai repetindo indefinidamente sem fim à vista. Vivemos de telenovelas ficcionais e reais. Algumas questões imperam: o que move as pessoas a uma exposição deste calibre? Que prazer experimentam em revelar ao mundo as suas remelas, os seus escarros matinais, o seu furúnculo na virilha ou as suas digestões ruidosas? Que estranho desejo as leva a contar a história da sua vida aos quadradinhos, as suas fraquezas, os seus podres? Que alegria lhes dá entabularem monólogos absurdos com câmaras de televisão e chorarem baba e ranho com saudades de familiares dos quais se separam voluntariamente durante uns dias? Que peculiar acesso de solidariedade as leva a tornarem-se amigas do peito de indivíduos que conhecem há meia dúzia de dias, quando sistematicamente ignoram familiares, colegas de trabalho ou vizinhos de anos? Finalmente, o que interessa tudo isto aos milhões de pessoas que assistem enlevada e fielmente a estes programas em detrimento daqueles que focam as questões políticas, sociais e económicas que presidem os seus destinos ou daqueles que, de algum modo, as enriquecem e aumentam a sua cultura geral? É esta a evolução das mentalidades no século XXI?
Parafraseando os gauleses, é caso para dizer "Estes romanos estão loucos!" . Depois de desnudar gradualmente o corpo, o que foi, a todos os níveis, uma excelente ideia, o ser humano entrega-se agora à nudez da alma à escala mundial, o que me parece muito mais vergonhoso e pornográfico. Basta ver o programa da Oprah ou do Dr. Phil e arrepelar os cabelos, corando pela miséria da exposição alheia. Será que agora toda a gente se convenceu que é de Hollywood? A humanidade precisa de uma terapia colectiva!
Haverá vida em Marte?!

(foto Alessandro Pautasso)

quarta-feira, outubro 17, 2007

Triste fado

Este é o grito que me sai para não sufocar! O grito que se impõe quando sei que o fisco perdoa dívidas de milhões de euros a indivíduos privilegiadíssimos, enquanto esmifra, por exemplo, cidadãos idosos que subsistem com quantias pornográficas. O grito que irrompe quando leio que a Caixa Geral de Aposentações admitiu hoje que nunca considerou incapaz para o exercício das funções a professora a quem foi retirada parte da língua na sequência de um cancro, deixando a docente com grande dificuldade em falar. O grito que se solta quando constato que o orçamento geral de Estado para 2008 é um ainda maior e mais descarado assalto ao bolso dos contribuintes. O grito que extravasa quando fontes fidedignas me relatam os desvios monumentais que ocorreram aquando da Expo 98 e percebo que há coisas que nunca mudam. O grito que constantemente aflora aos meus lábios, vindo lá do mais fundo das entranhas, porque sofro com as múltiplas impotências inerentes à minha condição humana, porque sou mortal, bem como todos aqueles que amo, mas, e hoje mais do que nunca e acima de tudo, porque sou portuguesa!
"Às armas, sobre a terra e sobre o mar. Pela pátria lutar!" É notório o quanto a maioria dos portugueses desconhece o hino nacional! A
té quando vamos aguentar calados e passivos? Para quando o grito colectivo?

(foto Alessandro Pautasso)


sábado, outubro 13, 2007

Farpas


Há coisas que nunca mudam! Até quando?...

"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. (...)
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis, no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este, criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas. Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."

Guerra Junqueiro, Pátria, 1896

(foto Julien Roumagnac)

Os gloriosos malucos das máquinas voadoras



O Porto tem um encanto muito particular e este espectáculo do Red Bull veio lembrá-lo em directo a todo o país, especialmente aos que gostam de tesourar na Invicta.
Já lá vão uns tempos, mas não resisti a recordar este evento cheio de adrenalina que tanto lucrou com a paisagem envolvente e o azul do Douro.
Fazem falta outras iniciativas similares, pois Portugal é pródigo em belas cidades e todos ansiamos por algo mais do que festivais ao longo do Verão. Dêem-nos asas que nós voamos!

(fotos Kika)

quinta-feira, setembro 13, 2007

Vozes que se espalham

Excerto de um artigo de J. Pacheco Pereira retirada do Abrupto, comentando o livro de Andrew Keen que abaixo se visualiza O Culto do Amador - Como a Internet dos dias de hoje está a matar a nossa cultura, pois nele revejo aquilo que penso.



ESTÁ A INTERNET A MATAR A NOSSA CULTURA?


A crítica de Keen e de outros "apocalípticos" falha ao menosprezar o enorme adquirido que se deu nestes mesmos 150 anos, a verdadeira revolução social, que permitiu a muitos milhões de pessoas, que viviam dominadas apenas pelo seu trabalho brutal e pela cultura "folclórica" tradicional, aceder a consumos que nunca tiveram e passar a ter voz em áreas que sempre lhes estiveram vedadas, seja como audiências de televisão, seja em estudos de mercado, seja em sondagens, seja comprando e votando. O efeito dessa voz cria uma enorme perturbação, degrada tudo, simplifica, confunde, mas, ao alterar sem retorno os equilíbrios elitistas do passado, gerou novas condições de democraticidade, competitividade e criatividade que também se verificam na rede.
Não sei até que ponto se encontrará um qualquer equilíbrio que trave o lixo demagógico que hoje enche tudo impante da sua nova voz tecnológica e salve a "nossa cultura", mas não posso, em nome dessa mesma "cultura", deixar de valorizar o acesso de milhões à porta de um mundo em que habita o "espírito", mesmo que assustado com tanta confusão.

(No Publico de 8 de Setembro de 2007)

quarta-feira, setembro 12, 2007

Quando outros o dizem por nós melhor do que nós mesmos... ( III )




Vais olhar para o que vês. Mas vais ter de olhar absolutamente. Vais tentar olhar até ao apagamento do teu olhar, até à sua própria cegueira, e através dela deves continuar a tentar olhar. Até ao fim.

Marguerite Duras, Textos Secretos


Hoje preciso de muita clarividência e não estou segura de consegui-lo...

(as minhas desculpas ao autor desta bela foto pois perdi-lhe o rasto)

Cenas bem esgalhadas

Battle of The Bands - ZappInternet


Não interpreto como uma apologia à violência, antes como uma sátira ao tempo conturbado em que vivemos.


C2C (Coup2Cross) - DMC 2005 - ZappInternet


Todos os estilos têm os seus virtuosos.



Mona Lisa descending an staircase (corto de animacion) - ZappInternet


Arte fusionada.




segunda-feira, setembro 10, 2007

Quando outros o dizem por nós melhor do que nós mesmos... ( II )


Ao meu amigo Paulecas, em sintonia com a saudade e a tristeza que experimenta quando nisso pensa um pouco mais do que o habitual:


Deixai-o chorar! é nobre
Quem chora tamanho amor
Ninguém alcunhe de pobre
Ao rico de tanta dor;
E quem não tem a alma fria
Passando escute e não ria.

________________________________

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!


Antero de Quental

(foto Martin Andreasen)

quinta-feira, setembro 06, 2007

Àqueles que passam


"Às horas em que a paisagem é uma auréola de Vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amor, no silêncio do meu desassossego, este livro estranho como portões abertos numa casa abandonada. Quem escreveu esta frase magnífica? Fernando Pessoa, em obra atribuída a Bernardo Soares (que ele diz não ser propriamente um heterónimo, mas um "semi-heterónimo"). Esta teria sido a frase que Pessoa imaginara para iniciar o seu Livro do Desassossego. Lembro-me ainda, no princípio dos anos 80, quando o meu pai, com mais duas colaboradoras, preparava a primeira edição desta obra extraordinária. Já nessa altura o grande problema era a forma de ordenar os múltiplos fragmentos textuais. Além disso, para além dos passos que Pessoa considerara como fazendo parte dessa obra futura, havia, como hoje continua a haver, os textos sem indicação precisa, que poderiam (ou não) ser incluídos na obra."

Eduardo Prado Coelho, Desassossego e loucura, crónica do Público de 25-09-06 (um grande senhor das nossas letras, nomeando dois iguais)


Ultimamente são muitos os que partem. Recentemente foi Eduardo Prado Coelho, hoje Luciano Pavarotti, O Tenor. Único! Inigualável!
Finalmente os jornalistas deixam-se das tretas de "vítima de doença prolongada" e chamam os bois pelos nomes. Pavarotti morreu de cancro no pâncreas aos 71 anos. Com os atentados ecológicos que cometemos, as radiações a que nos sujeitamos, o ar que respiramos, a água que consumimos e, acima de tudo, os alimentos que ingerimos (corantes, conservantes, emulsionantes, edulcorantes, fenilalaninas e outras quantas dezenas de adulterantes, para não nomear já os animais que se alimentam dos seus semelhantes e que nós posteriormente deglutimos), espanta-me que não estejamos todos cancerosos. Este é o real flagelo da nossa era e só quem com ele contacta directamente é que sabe o quão desumano, doloroso e avassalador o cancro pode ser. Torna-nos genuinamente impotentes para o que quer que seja e faz-nos encarar a morte como uma bênção.
Considerações à parte, a minha homenagem a estes dois grandes homens que directamente contribuíram para a minha felicidade: o professor Prado Coelho e o tenor Luciano Pavarotti. Tal como esta borboleta, não passaram despercebidos nem me deixaram indiferentes à beleza e peculiaridade das suas existências. Ao contrário dela, e ainda assim não tanto quanto seria de desejar, foram menos efémeros. Sou-lhes grata por terem partilhado os seus dons.

(foto Kika)

A caminho de lugar nenhum


2005-06-24


Resolução do Conselho de Ministros n.º 102/2005


(...)
1- Combate à fraude e evasão fiscais. - A solidariedade entre todos os Portugueses, para colocar o País de novo na senda do crescimento económico e implementar as medidas necessárias para a consolidação das contas públicas, impõe um combate sem tréguas à fuga a um dos deveres básicos de cidadania: o pagamento de impostos.
(...)
d) Congelamento das progressões e suplementos - a imperiosa necessidade de controlar a aumento da despesa pública obriga o Governo a consagrar, a título meramente excepcional e temporário, medidas de congelamento das progressões na carreira e dos suplementos remuneratórios que se manterão nos seus valores actuais. Esta situação excepcional manter-se-á até 31 de Dezembro de 2006, data em que deverá entrar em vigor a revisão do sistema de carreiras e remunerações.

Quem desejar aceder ao documento na íntegra pode usar a hiperligação e constatar que este texto, apesar de tão metafórico e eufemístico, não se insere na categoria de prosa poética.
Algumas ilações a retirar da leitura destas citações:
1ª- Entenda-se por solidariedade ao País (com letra maiúscula como nos velhos tempos, evitando reminiscências da abrilada) ser penalizado por nada dever ao fisco, pois é exactamente o que acontece aos funcionários públicos. Os seus descontos são efectuados ao cêntimo, sem qualquer hipótese de actuação fraudulenta. Entretanto aqueles que de facto fogem aos impostos são beneficiados com aumentos no vencimento e progressões nas carreiras, o que pode ser tudo menos solidário. A palavra solidariedade adquiriu portanto novos significados e múltiplas cambiantes desde a tomada de posse do actual governo, ainda que não tenhamos sido previamente inteirados da respectiva revisão semântica, nem das suas nefastas repercussões. É certo que devíamos ter interiorizado há muito os perigos e as armadilhas das maiorias e ter já aprendido a evitá-las, o que é inviável para portugueses que não atingem sequer as graves consequências que estas, e outras tantas medidas compiladas neste e noutros documentos análogos, acarretam para os visados e para o país.
Uma só questão: poderá haver crescimento económico sem poder de compra e com um tal recurso ao crédito e ao endividamento?
2ª- Há quem perca qualidade de vida e aperte um cinto já sem buracos, enquanto inúmeros não passam facturas, alguns criam sacos azuis e pavoneiam-se com sacos Louis Vuitton, outros desfilam em automóveis topo de gama a expensas do erário público e por aí fora, todo esse rol interminável que já cansámos pois nada se altera. É então um dever básico de cidadania um conjunto de indivíduos contribuir solitariamente para colmatar os buracos orçamentais criados por terceiros? Bom, talvez até constitua um óptimo argumento a usar perante um povo que não domina, nem em teoria nem na prática, este conceito arrevesado que a Europa nos trouxe por inerência.
Os romanos convenceram o povo da culpa dos cristãos e serviram-nos na arena para diversão das massas, mas todos sabemos a quem pertenciam realmente os crimes. Povo bem manipulado é povo facilmente governado, em especial quando até gosta de telenovelas e noticiários com Maddies (com todo o respeito pela criança, como é óbvio).
3ª- As palavras excepcional e temporário alteraram-se em termos semânticos, quiçá até orgânicos, visto que se tornaram elásticas! Já lá vão mais de dois anos e, ao que consta, a situação vai permanecer imutável. Note-se que o prazo cessava em 2006. Estamos em 2007 e já constou que se prolongará ao longo de 2008. Visto que não nos podemos apoiar na credibilidade de quaisquer palavras ou promessas, resta-nos a esperança de que a recente etimologia destes vocábulos não seja ad eternum, caso contrário o genuflexódromo oficial (como diz o meu amigo Monsieur de Guillotin) contará com tantos peregrinos que terá de sofrer novo alargamento!
No entanto, e segundo sondagens que podem ser objecto de manipulações, os portugueses estão satisfeitos com o governo. A inveja, sinónimo de mediocridade, sempre foi uma das nossas características mais notórias. Inveja de quê? De uma ideia quimérica
de privilégio decorrente da velha máxima de que os funcionários públicos são uns felizardos porque não fazem nada? E que mesmo ganhando uns trocos inferiores aos dos seus colegas do privado são uns sortudos? Ainda que assim fosse, é triste constatar como os lusos patrícios nivelam sempre por baixo! O primeiro e mais acalentado sonho do português é não fazer nada. E ao invés de almejar o progresso comum, contenta-se, parece que até se regozija mesmo, com a desgraça individual.
Deixemos-nos de lirismos: nem uma aldeia global conseguimos ser, quanto mais uma nação comunitária!
4ª- Tememos que se ande a ponderar a implementação de novas medidas básicas de cidadania, como a retirada do rendimento social de inserção, do subsídio de desemprego, do abono de família, das comparticipações médicas, et caetera. São quantias magrinhas, mas grão a grão enche a galinha o papo. E venham mais multas!
5ª- Queremos contribuir solidariamente para o fim da crise (a de 1383/85 ou é uma mais antiga? Já não sabemos bem, contas até nem são o nosso forte) e aliar-nos ao governo nesta luta. Já que se tornou usual no nosso país o desempenho de funções mal remuneradas por cidadãos do leste da Europa, sugere-se então que os milhares de professores que se encontram sem trabalho sejam chamados a intervir num justo intercâmbio laboral. Chegou a hora de dar um cunho ainda mais abrangente ao conceito de solidariedade e presentear os países de leste com a nossa contribuição para o seu rápido florescimento, para que em breve possam estar a ultrapassar-nos como é hábito e normal. Eis uma excelente iniciativa para acabar com as chatices da classe docente e poupar em subsídios de desemprego que só contribuem para aumentar o buraco orçamental. Até porque, e em última análise, os professores são duplamente culpados: são uns funcionários públicos que não fazem nada e uns cretinos que seguiram a via ensino ao invés da via profissionalizante! Felizmente esta irregularidade já foi detectada pela argúcia incontornável da senhora ministra da educação, a qual encetou uma nobre campanha de desencorajamento aos jovens universitários que almejem cometer o mesmo delito. É óbvio que lhes resta sempre a opção de serem filósofos trolhas, historiadores merceeiros ou linguistas serventes de pedreiro, mas o mais sensato é optarem mesmo por alguma estratégia mais elaborada, tipo voltar ao primeiro ano, pagar novas propinas e constituir família em 2020. Já os mais novos devem, por sua vez, enveredar pelo técnico-profissional de modo a assegurarem os empregos dos professores do quadro, senão de todos, pelo menos dos que já não têm idade para se dedicar à pesca da sardinha. E se pensarem em desistir para trabalhar para o sustento da família, é-lhes interditado o acesso às discotecas e aos estádios de futebol, à boa moda prepotente e directiva agora implantada na nação, vulgo "Ou tás quetinho ou levas no focinho!"
"Os ricos que paguem a crise" é um slogan perfeitamente démodé! Agora o que rende é massacrar mesmo a função pública, na esperança de virmos a assistir, num futuro próximo e glorioso, à derradeira etapa desta magnífica cruzada: a privatização da classe política ou, em alternativa, a sua reinserção profissional na reforma agrária.

(foto Martin Andreasen)

sábado, agosto 25, 2007

Nostalgia de Verão


Nos Verões, à semelhança do que ainda hoje se passa, muitos eram os que rumavam até ao Algarve, a Côte d'Azur nacional. Como não havia auto-estrada, a viagem alongava-se e era bem mais bonita. Sempre adorei ver desfilar paisagens e povoações pelos vidros do automóvel e, ao contrário dos que lamentam as distâncias a percorrer, gostava de viver num país maior e ainda mais discrepante em termos de relevo.
O Algarve nada tinha a ver com a selva contemporânea. Era um paraíso à beira-mar plantado, tranquilo, bastante desertificado
e sem poluição. As praias onde agora se empilham os ilustres e os paparazzi, com os seus estacionamentos de sete euros e os seus restaurantes in de preços pornográficos, estavam praticamente desertas e proporcionavam uma genuína sensação de liberdade. Bastava descer as escarpas, escolher (que belo verbo!) um local aprazível junto às rochas ou debaixo das cabaninhas, colocar as toalhas na areia dourada e limpa e mergulhar na água transparente e mansa onde se viam peixitos. Havia tantas amêijoas, conquilhas e caranguejos que era impossível resistir ao apelo de os apanhar, ou às infinitas conchas e pedrinhas de múltiplos tons e formatos que eram o colar do mar. O cheiro da maresia era mais intenso, as cores mais vivas e brilhantes e os ruídos eram de facto os da natureza, adoçados pelo canto dos passarinhos. Éramos meia dúzia de aventureiros que saíam da rota habitual em busca desta felicidade, que então parecia um dado adquirido e agora não passa de uma miragem. E mesmo assim os poucos presentes acabavam por interagir ao longo do dia, partilhando sanduiches e falando de política, o assunto quente da época para gente jovem e progressista que gostava de ter um papel activo no rumo dos acontecimentos. As mulheres usavam aqueles óculos enormes que as aparentavam às moscas, e que entretanto voltaram a estar na moda, e protegiam os cabelos com óleo de coco e chapéus de palha glamorosos. Para nós havia bonés e touquinhas coloridas de algodão que, misturadas com as sardas, nos davam um ar de traquinice saudável.
Naquela altura as pessoas eram menos individualistas, por isso as famílias juntavam-se aos amigos e partiam de Lisboa em caravana nos carros atafulhados de bagagem e de gente. Os tejadilhos iam cheios de bricabraques presos à grade metálica por elásticos com anzol e as palas traseiras varriam depois o chão devido ao peso, fazendo coro com os rádios caprichosos que lançavam mais ruídos de batata frita do que música propriamente dita. Todos estes preparativos demoravam horas intermináveis, pelo que nós nos divertíamos a andar de bicicleta, a jogar às escondidas ou a atazanar os cães, até sermos cuidadosamente depositados num colo vago ou num cantito liberto. Ainda não havia a imposição do cinto ou das cadeirinhas, o que tornava tudo mais dinâmico e caloroso.
A primeira noite era sempre muito especial, pois o céu estrelado e a temperatura amena permitiam ceias ao ar livre e mergulhos fora de horas, privilégios que o quotidiano não nos proporcionava e pelos quais esperávamos o ano inteiro. O ar estava impregnado daquele cheiro doce e meio abaunilhado dos loendros, que até hoje associo sempre às terras que avistam África. Os quartos de outras eras arejavam entretanto, repletos da magia das coisas que já não existem: livros de adolescentes ingénuas e românticas, cartilhas escolares do tempo dos avós, jogos de dominó, de loto e de xadrez, balancinhas de cobre com pesos, santinhos daqueles que ficam verdes de noite e velam pelo nosso sono, camas de ferro com colchões de palha, o jarro com a bacia e a toalha de linho para espantar o sono pela manhã e tantos outros vestígios de vidas que se esfumaram deixando rasto. E havia ainda aquele momento fascinante em que eu seguia o tio Manuel para o ver tirar as dentaduras de gengivas enormes e vermelhas e escová-las com esmero. Na altura ele já tinha desistido de falar, mas os olhitos marotos e brilhantes riam-se para mim, deliciado com a minha cara de genuíno espanto perante uns dentes que saiam direitinhos da boca e a ela retornavam mais luzidios. Por mais vezes que assistisse àquele ritual, a verdade é que nunca me cansava.
Como todas as pessoas que estão caladas, o tio Manuel apercebia-se muito melhor do que se passava em seu redor e foi o único a descobrir que a alegria que trazíamos das excursões às amoras se devia mesmo aos medronhos quentes, as nossas primeiras experiências embriagantes com direito a caganeira, ressaca e tudo o mais! Nunca conheci ninguém que dialogasse assim com os olhos. Era o seu dom e talvez por isso não se desse ao trabalho de usar a língua e os dentes ambulantes, ou talvez porque se tivesse cansado de retorquir sempre que era atropelado pelo discurso da cara metade, quando não pela peruca que dela saltava com a ira desmedida. Para já não falar nos delírios do cunhado que, quando amuava por uma qualquer razão incompreensível para comuns mortais, abria a portada e metia de fininho "o pé na greta", como ele dizia, para ter uma crise de reumático e desencantar um motivo válido para ser um resmungão de marca maior. Grande personagem, que uma vez se ia afogando para salvar uma peúga que o mar teimou em arrancar do tal pé reumatoso, que podia arejar na greta mas que não demolhava na água salgada sem capota. Lá foi o meu pai arrancá-lo às ondas traiçoeiras da Adraga, pois isto infelizmente não foi no Algarve, mas ele nunca lhe perdoou a perda "do peúgo" (no seu entender, meia de homem não podia ter um nome feminino!). Enfim, era perfeitamente compreensível que o tio Manuel não quisesse falar e isso tornava-o muito mais interessante aos nossos olhos, pois aquela geração de tios-avós e avós, que também eram meus por empréstimo e que ninguém desterrava para longe, eram bizarros e protectores quanto baste. E só ele mantinha aquele espírito de criança que o fazia cúmplice natural das nossas traquinices. Só ele e o meu pai não se zangaram, por exemplo, quando eu resolvi cantar pela rua fora com um melão à cabeça que era quase do meu tamanho. Vínhamos das compras e espontaneamente decidi extravasar a alegria e armar-me aos cágados, visto que até tinha a Becas, já mais velha, a apoiar a marosca. Mas o melão não era bem como uma bola de râguebi e, num rodopio mais elaborado acompanhado de uma nota mais esganiçada, escorregou-me das mãos e escaqueirou-se no empedrado. Caramba, era um belo melão sumarento e ali se findou ingloriamente, não sem me dar o merecido banho, claro! Por mais consciente que estivesse do castigo que se ia seguir, a verdade é que tive um dos maiores ataques de riso da minha vida, daqueles que lavam a alma e nunca mais se esquecem.
Era assim o Algarve da minha infância, onde passava duas ou três semanas antes de ir para o norte, feliz pelo contraste entre estes dois mundos dentro de um mesmo e pequeno país e dentro da minha pequena vida. Era um Algarve que já só existe na minha memória, mas que me proporcionou um manancial de vivências fantásticas e que associo a um contexto paradisíaco que se perdeu para sempre devido ao inevitável progresso e, acima de tudo, à estupidez dos seres humanos. Bom, Adão e Eva também conseguiram dar cabo do Paraíso e eram só dois!

(foto Shazeen Samad)

terça-feira, agosto 21, 2007

Copérnico cubista

Um amigo meu esteve recentemente em Madrid e contava-me entusiasticamente as suas impressões da capital espanhola e o itinerário cultural que tinha feito. Como é mais dado à diversão do que à cultura, notava-se que estava orgulhoso por, desta feita, ter calcorreado mais museus do que discotecas. A dado momento referiu a visita ao Centro de Arte Moderna Reina Sofia como um dos pontos altos da viagem, gabando acima de tudo o quadro Copérnico. Bom, fiquei surpresa mas achei por bem não me precipitar e comecei a rever mentalmente alguns dos pintores cujas obras figuram neste espaço e os nomes das mais emblemáticas. Entretanto ele continuava a nomear enlevadamente a tela Copérnico, as suas consideráveis dimensões, o desespero contido nas imagens e blá, blá, blá, enquanto eu pensava "Caramba, o Copérnico foi astrónomo, matemático e muitas outras coisas, mas por que diabos estará retratado numa tela de um museu de arte moderna?! E desespero, só se for devido à teoria heliocêntrica não ser evidente para os seus contemporâneos. E quem é que o pintou?!" E de repente, pela descrição do quadro e pela vaga similitude fonética, acendeu-se a lâmpada na minha cabeça! "Ouve, tu estás a falar da Guernica do Picasso, meu cromo!" Altas gargalhadas, desculpas com o adiantado da hora, o vinho do jantar e os posteriores digestivos. Bem, Copérnico certamente daria pulos de alegria na cova se figurasse na parede pelo punho de Pablo Picasso!

(quadro de Pablo Picasso, Guernica)

Fogo que arde e se vê


Lamentavelmente, os fogos que todos os anos dizimam hectares da nossa área florestal não são artificiais, não proporcionam magníficas imagens, nem estão à mercê do nosso controle. O excesso de calor costuma ser o álibi usual, contudo a agência Lusa reportou que quase seiscentos bombeiros e mais de cento e sessenta viaturas participavam no combate aos quatro incêndios de maiores dimensões que lavravam hoje ao final da tarde em Portugal, segundo o último balanço da Autoridade Nacional de Protecção Civil.
Por mais medidas que possam ser implementadas, a verdade é que só deixarão de existir incêndios quando todos nós tomarmos as necessárias precauções nesse sentido. À semelhança da higiene pública ou da reciclagem, também a preservação do meio ambiente é um princípio que tem que ser assimilado e praticado pelos cidadãos, na certeza de que a floresta é, em última instância, um dos maiores atractivos do nosso país. E apesar de continuarmos a não retirar dividendos da nossa orla costeira nem das nossas magníficas paisagens, convém-nos pelo menos preservá-las, na esperança de que um dia haja governantes dignos desse nome que revertam a situação. Isto se os que agora autorizam nova devastação em áreas protegidas da costa algarvia, com os consequentes atentados arquitectónicos que tal medida comporta, deixarem alguma coisa de pé... Se somos cúmplices por permiti-lo, não o sejamos pela nossa negligência!

(foto Jez Coulson)

Sintonia


Às vezes tentamos ter o discurso apropriado no momento exacto e o nosso esforço é inútil: não há reciprocidade, nem compreensão da mensagem transmitida. Outras vezes, espontaneamente, tudo flui de forma adequada: fazemos-nos entender e faz-se luz! As peças do puzzle encaixam-se temporariamente na perfeição, como uma partitura de música clássica em que diferentes instrumentos dialogam em sintonia. São estas ocasiões que nos fazem constatar que vale a pena interagir sem receios e acreditar numa harmonia improvável entre universos únicos e díspares.
Um dia a seguir ao outro: eis a chave da comunicação!

(foto Frank Boenigk)

quarta-feira, agosto 15, 2007

Depósito de pastilhas elásticas


Ainda não chegou a Portugal, mas faz cá muita falta! E até tem um grafismo apelativo que contribui para alegrar o ambiente e melhorar a estética das ruas. Pior do que uma pedra no sapato, que facilmente se retira, é uma pastilha elástica vinda inadvertidamente a reboque colar-se na carpete da sala!
Resta saber se esta medida resultaria ou se seria como os contentores para a caca dos canídeos, que permanecem limpinhos enquanto as ruas se transformam em autênticos campos minados. É triste ter que andar sempre de olhos no chão para não enfiar o pé na bosta! Dizem que dá sorte, mas a verdade é que ninguém a quer pisar, nem há quem se orgulhe de ruas que são autênticos WC de cães.

A Senhora que limpa


A Senhora aparece duas vezes por semana, há alguns anos e esta parte, para limpar as escadas. É pequenina, como as portuguesas do antigamente, e tão franzina que parece que se pode desmoronar, mas limpa tudo devagarinho com ar compenetrado e diligente. Tem uns olhos escuros, circundados por olheiras permanentes, que nos observam como os cães meigos e anda sempre vestida de negro. Colecciona um imenso rol de lutos, familiares ou alheios, que não lhe permitem alterar a indumentária e lhe trazem prontamente água às pestanas. A sua idade é indefinida, mas a cara murcha e as mãos deformadas denotam as moléstias do trabalho diário, que principia às sete da manhã e acaba quando Deus quer. Graças à minha mania de associar as pessoas aos bichos, sempre que olho para ela vejo uma formiguita laboriosa. Por vezes não a encontro, pois não sou grande adepta de madrugar, mas oiço quase sempre a vassoura a arranhar a minha porta e o tapete a ser libertado do pó. Já me ocorreu que é uma maldade a Senhora não puder usar um aspirador em pleno século XXI, mas ela não parece importar-se com isso. Poupa vassouras, panos e esfregonas com uma tenacidade fora do comum e economiza nos detergentes, sempre presa à velha ideia de que desperdiçar é um pecado imperdoável. Também lustra as plantas com um enorme carinho, contando-lhes aquilo que os ouvidos dos condóminos se recusam a absorver. Estes passam por ela furtivamente e, com muita sorte, lançam um "Bdia!" resmungado entre dentes. Afinal fazem-se o mesmo, portanto não é de espantar.
Esta mulher podia ser como qualquer outra pessoa que desempenhasse uma função similar, mas de facto há tanto que a distingue! Uma vez soube, por acaso, a data dos meus anos e desde então deixa-me sempre um postalito na caixa do correio, escrito naquela caligrafia irregular e infantil típica das pessoas que fizeram a primária no seu tempo, com uma flor seca no interior. Enxota os cães que alçam a pata nas jantes do meu automóvel e depois relata-me a proeza com um ar macio mas orgulhoso. Faz sempre um comentário pueril à minha roupa enquanto me lança olhares embevecidos e se me vir a carregar tralhas quer por força ajudar. E lamenta quando saio à corrida para ir trabalhar porque não ressuscitei a tempo com o chinfrim dos dois despertadores em uníssono com o telemóvel, o qual entretanto foi captado pela ultrajada vizinhança que me rogou pragas maléficas.
Mas a Senhora não me premeia com tudo isto gratuitamente. O facto é que fui a única pessoa que se dignou conhecê-la quando me impingiram o magnífico cargo da administração do condomínio. Achei por bem ir ter com ela e inteirar-me do dia do pagamento e de outras chatices similares, já que ninguém me esclareceu por aí além sobre as minhas novas atribuições. Pois ficou encantada, para meu grande espanto, quase comovida mesmo. Confessou-me então que os meus antecessores lhe colocavam o salário num envelope lá na casinha dos arrumos, quando não se esqueciam e a deixavam à míngua durante alguns dias. E ela sem coragem de lhes ir pedir aquilo a que legitimamente tinha direito, apesar do transtorno que lhe causava. Irritou-me isso de tal maneira que, em caso de dúvida, até lhe pagava mais cedo para não me morder a consciência. E levava-lhe paninhos novos, que ela guardava num cantito porque os outros ainda não estavam rotos, tendo sempre o cuidado de lhe perguntar pela filha e pelo neto. Ou dava-lhe mais produtos para facilitar a limpeza e agilizar a seca. Mas breve percebi que, acima de tudo, o que a tocava a era eu tratá-la como igual, o que, à semelhança do pagamento, é uma vez mais um direito adquirido, algo que lhe assiste em pleno. Estou mesmo em crer que não somos sequer iguais, já que ela é certamente muito mais bondosa do que eu!

Mas de igualdades e direitos a Senhora entende muito pouco, ou não quer entender, e a minha maior surpresa aconteceu de facto há um tempo atrás. Encontrei-a a limpar a entrada às dez da manhã, o que não é usual. Perguntei-lhe se estava tudo bem e respondeu-me, com um sorriso entre tímido e matreiro, que sim, que aquilo até já eram metade das suas férias, daí o adiantado da hora. Como não entendi à primeira, ela explicou-me então que só estaria ausente durante duas semanas e acrescentou orgulhosa: "Este prédio pode lá estar um mês sem limpeza menina! Deus nos livre!" A menina (e não é que soa tão bem?!) abriu a boca até aos joelhos e perguntou: "Mas vai gozar essas férias depois, não? No Natal ou assim?". Retorquiu indignada: "Mas nem pensar! O trabalho vem em primeiro lugar e nas festas suja-se muito." Bem arenguei que a escada era uma treta e que o pessoal é que tinha que se preocupar em sujar menos e que a família é que estava realmente em primeiro lugar, para já não falar no descanso e na diversão e blá, blá, blá. Olhava-me com aquele ar benevolente com que se olham as crianças a dizer tolices, mas percebia-se que estava satisfeita com a minha indignação solidária. Desisti, dei-lhe uma palmadinha no ombro, chamei-lhe tonta e fui à vida. E ao fim de uns dias lá estava um autocolante amarelo, daqueles a que damos um nome arrevesado, a destacar-se no placard do condomínio. Nele informava que não viria durante quinze dias e que desejava a todos umas boas férias!
Muitas vezes penso com tristeza que o mundo ficará definitivamente mais pobre e hostil quando as pessoas como a Senhora nos abandonarem. É toda uma faixa etária com princípios, valores e educação similares, detentora de uma enorme nobreza de espírito e pródiga em pequenos gestos de delicadeza que, não tarda, vai deixar nas nossas existências um vazio impossível de preencher... E essas pessoas são também alguns elementos das nossas famílias, talvez aqueles que mais estimamos. Sinto uma teia fininha e gelada a apertar-me o coração quando penso nisso!

(foto Andy Bell)

Transitando


Apesar de todos os esforços que vêm sendo sucessivamente envidados, a sinistralidade em Portugal mantém-se similar. É provável que os acidentes ocasionados pelo excesso de álcool tenham diminuído, o que é positivo e louvável! Mas aqueles que se devem às inconsciências praticadas pelo excesso de frustração quotidiana, de testosterona mal direccionada ou de aselhice, só podem diminuir com civismo e bom-senso. Estes dois princípios deviam ser aliás bem incutidos nas escolas de condução aos aspirantes a encartados.
As últimas medidas implementadas para aumentar a segurança rodoviária têm-nos dado porém muito que pensar. A cidade está minada de radares, de câmaras de vigilância, de mil olhos de vidro que nos perseguem por toda a parte. Resta saber se isso é totalmente positivo ou se, pelo contrário, não esconde algumas armadilhas perniciosas. Quantos de nós, por exemplo, não nos distraímos perigosamente a conduzir para olhar os postes de iluminação na tentativa de vislumbrar o camuflado olho maléfico? E que fazemos naqueles dias em que acordamos tarde e estamos atrasados para chegar ao trabalho? Sujeitamos-nos às duras consequências inerentes ou, pelo contrário, arriscamos a pesada multa? E os taxistas, será que ainda obedecem às velhas máximas "Leve-me ao aeroporto na gáspea!" ou "Siga aquele carro!" sem pestanejar, ou será que nos vão comunicar rispidamente "É você que paga a multa!"? Mais sério ainda será quando tivermos que ir de urgência para o hospital. Como proceder nesta situação? Colocar um lenço branco na janela ou ter à mão uma tabuleta a dizer "Emergência médica"?! Será que as câmaras captam e o juiz nos perdoa? Ou será que nos vai dizer que era obrigatório manter os limites de velocidade a qualquer preço? E no caso de morrermos, a família herdará a contrafacção? Ainda não se conhecem respostas para estas questões, mas que são pertinentes não restam dúvidas.
Parece legítimo então que nos questionemos se estas duras imposições aos limites de velocidade visam realmente proteger os cidadãos ou se não são apenas mais uma das múltiplas estratégias de engordamento dos cofres do Estado. Aqueles cofres que estão sempre vazios apesar dos milhares pagos em inúmeros impostos, contribuições de toda a ordem, taxas diversificadas, multas de todos os tipos, etc, etc. Que acidentes mortais ocorreram em Belém, à beira-rio, para termos que circular a 50km à hora debaixo da estreita vigilância dos radares? Qual é a diferença entre a auto-estrada Lisboa-Cascais e o IC19 para neste termos que circular a 100 ou a 90 consoante os troços? Será porque este tem mais faixas com melhor piso?! Não se compreende... Para já não referir que a constante alteração dos limites de velocidade dentro dos mesmos itinerários nos baralham o cérebro e nos fazem andar sempre à cata de sinalização e de câmaras malignas. Se calhar um dia vão-nos pôr uma câmara em casa para precaver as nossas sandices e minorar os terríveis desperdícios de papel higiénico, vigiar o equilíbrio calórico das nossas refeições de modo a prevenir o excesso de colesterol e poupar nas doenças inerentes ou vigiar o uso de preservativos de forma a precaver o impacto ambiental dos mesmos quando atirados para a sanita ou os prejuízos da sua não utilização devido à contracção de DST, entre tantos outros itens de uma lista infindável que receberemos via correio electrónico. E pensar que os Estado Unidos ainda não assinaram o Protocolo de Quioto, caramba!
Seguindo a boa tradição deste país - onde há lombas nas subidas, passadeiras a seguir a curvas num convite à matança, ausência de sinalização ou sinalização inadequada, buracos do tamanho de crateras sem protecção, semáforos que, quando não electrocutam os peões, obedecem aos seus toques sem intervalos periódicos provocando engarrafamentos descomunais, buracos nas vedações das auto-estradas que permitem a livre circulação de pessoas e animais e outras bizarrias afins (o rol é longo!) - vão pulular agora, que nem cogumelos, painéis similares ao da imagem: proibida a circulação de bicicletas. Será a última medida inovadora no combate ao défice económico da nação, ao qual são alheios a má gestão, a incompetência da classe dirigente, os múltiplos cargos fantasma de direcção de empresas públicas como a Epul com vencimentos milionários ou o despesismo das alterações de quadros aquando das mudanças do Governo, vulgo jobs for the boys, para citar apenas umas ínfimas parcelas de uma lista gigantesca e formalmente comprovada.
Abaixo o único veículo em que o animal puxa sentado! Bicicletas não andam depressa, nem pagam multas chorudas!

(fotos Andy Bell)

terça-feira, agosto 14, 2007

Homenagem a Miguel Torga


Comunicado

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.


Sísifo

Recomeça....

Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças...


Apelo

Porque
não vens agora, que te quero
E adias esta urgência?
Prometes-me o futuro e eu desespero
O futuro é o disfarce da impotência....

Hoje, aqui, já, neste momento,
Ou nunca mais.
A sombra do alento é o desalento
O desejo o limite dos mortais.


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É impossível deixar passar em branco o centenário do nascimento de um dos maiores escritores portugueses de todos os tempos. Torga foi não só um artesão exímio da língua pátria, como também um indivíduo de grande profundidade intelectual. O seu forte pendor telúrico permite-nos um contacto privilegiado com as nossas raízes ancestrais e fortalece o elo que nos une à terra mãe lusitana.
A escolha destes três poemas não foi inocente, já que a sua contemporaneidade é notória. O povo trabalha no duro para manter uma parca qualidade de vida (a mais baixa da Comunidade Europeia segundo estatísticas ontem divulgadas, consequência de sermos os mais mal pagos quando, ironicamente, somos aqueles que trabalham até mais tarde) e não tem ninguém que lhe valha. Haja saudinha - mesmo com listas de espera de anos para intervenções cirúrgicas, encerramentos constantes de centros de saúde e notícias assustadoras de negligência médica nos hospitais - pois só ela nos permite sobreviver. E sonhar com dias melhores é tudo o que nos resta para não desalentar quando olhamos para o caminho duro do futuro, sendo que liberdade, pelo menos de expressão, é algo que vemos esfumar-se progressivamente no horizonte. No fundo, estamos todos demasiado amargurados e descrentes para acreditar em dias melhores, para continuar a ter paciência para apertar o cinto à espera de um futuro quimérico e intangível. Queremos mais e melhor hoje, aqui, já, neste momento!
Saliente-se que foi notada a ausência de membros do Governo nas comemorações deste centenário. Pobres trabalhadores competentes e incansáveis, os senhores estão a banhos no sul ou a viajar pelo estrangeiro, como é justo e legítimo. Só mentes deturpadas poderiam inferir que o Governo se está a borrifar para a cultura ou para um homem que é motivo de orgulho para este país, um escritor ímpar que ajudou a dignificar a sua imagem, cada dia mais pobre, e as suas letras, por vezes tão abastardadas!

sábado, agosto 11, 2007

Pedrada no charco


Quem folhear o Público deste sábado depara-se com três citações retiradas da blogosfera lusa relativas a Pinto da Costa e às suas mais recentes declarações televisivas. Nada de novo! À semelhança do processo da Casa Pia, também o caso Apito Dourado vai enxugando os cofres da nação sem que se aviste um desfecho próximo ou se comecem a apurar meros factos. Por mais lamentável que seja, é assim que se processa a justiça neste país de brandos costumes, onde os portugueses não dominam o conceito de cidadania já assimilado pela maioria dos europeus, nem exercem os seus legítimos direitos no que concerne à intervenção social e política. Muito pelo contrário, são antes facilmente intimidados por políticos prepotentes e manipulados por manobras de diversão sensacionalista, acabando até por gastar os seus magros trocados na aquisição de livros telenovelescos sobre a intimidade medíocre de figuras de pretenso interesse público. O Big Brother veio mesmo para ficar! No meio de tanta macacada, e já que as questões legais permanecem no limbo, o povo entretém-se com a novela da vida real, com o filão inesgotável do insulto reles e do diz que disse das comadres.
Resta-nos então reflectir com um mínimo de lucidez sobre esta peça burlesca "Dirigente do FCP versus Ex-Alternadeira" e chamar de uma vez os bois pelos nomes, revendo sucintamente o que se passou.
O sr. Pinto da Costa apaixonou-se um dia por uma mulher consideravelmente mais jovem e de reputação duvidosa, sendo contudo detentor privilegiado de um amplo conhecimento do seu passado e do seu carácter. Não obstante, descartou-se da legítima, que na altura não se coibiu de espernear sonoramente na comunicação social, e presenteou a sua amada com o estatuto de primeira dama. Pavoneou-se com a dita, partilhou cama e confidências, permitiu que esta se imiscuísse nos meandros da sua nebulosa existência. Daí inferirmos que de paixão se tratava, já que não estamos perante nenhum anjinho! Nos tempos áureos, o magnífico casal fervilhava nas páginas da imprensa cor-de-rosa, aparecendo em eventos sociais de relevo, ou bronzeando o esqueleto nas praias do país na companhia dos filhinhos da moça ou tão simplesmente assistindo enlevadamente aos jogos da equipa azul e branca. E, ainda de acordo com estas credibilíssimas fontes, Carolina era uma lady zelosa e Jorge Nuno um senhor que rejuvenescia. No entanto, com o passar do tempo e o estalar do ténue verniz da dita jovem, a relação começou a azedar, tendo para isso contribuído em larga escala a suposta infidelidade da mesma. Não deixa de ser curioso que um indivíduo em cujo currículo público consta pelo menos um caso de airosa troca de companheiras se mostre tão sensível e intransigente perante uma situação análoga, mas isso é já do domínio da flexibilidade ou do egoísmo de cada um. Em suma, a bola de neve não mais parou de rolar e avolumar-se, até culminar na consequente ruptura dos pombinhos e posterior publicação de uma das mais nítidas compilações de javardices redigidas em língua portuguesa. Como se já não nos bastassem as escritoras de cordel e o João Pedro George! Que saudades de Almada Negreiros e do Manifesto Anti-Dantas... Bons tempos!
Não vale pois a pena determo-nos afincadamente na esgrima verbal que este par encetou nos últimos tempos, nem tão pouco dissertar sobre as aquisições literárias dos portugueses ou sobre as prioridades da comunicação social. Ainda assim é sui generis que um indivíduo acutilante, de resposta pronta e aparentemente superior como o sr. Pinto da Costa, cometa a insanidade de dar o flanco, de não camuflar a sua mágoa perante o facto de Portugal saber que sofre de flatulências e, finalmente, de alinhar sem pejo nesta absurda troca de galhardetes de baixo nível. O que é que tem lucrado? De que forma tem reabilitado a sua imagem? Já a ilustre desconhecida que saltou para a ribalta, ganhou um mediatismo com o qual jamais havia sonhado e, não contente com a proeza, trouxe ainda a família a reboque. Proporcionou-nos o inefável deleite de privar com o seu ilustre progenitor, um vulto de relevo no panorama nacional com direito já a entrevista no noticiário das oito, que defendeu aguerridamente esta cria sua prodigiosa. Lamentável é que para tal tenha precisado de lançar a cria desvalida na fogueira da devassa pública da intimidade! De facto o país ficou mais descansado quando soube que o indivíduo repudia esta filha tresloucada que tem borboletado em vão pelas instituições psiquiátricas do Serviço Nacional de Saúde, enquanto louva a que, desolada com a ascensão de prostituta a primeira dama, morde a mão que lhe foi estendida e enfia o esterco no ventilador. Pelos vistos esta última característica é genética (ao contrário da maioria dos portugueses, as moças devem ter bons dentes!) já que Ana havia feito outro tanto ao surgir, novamente em horário nobre, a trincar na sua gémea Carolina a quem teoricamente deve, no mínimo, favores monetários. Tudo muito edificante, sem dúvida!
Para finalizar (?!) em cheio, aparece Pinto da Costa, em declarações recentes, dizendo: "Que credibilidade merece uma mulher que, (...) aos dezoito anos, e sem casamento, teve dois filhos?" A ira toldou-lhe certamente a inteligência pois esta foi afinal uma das afirmações mais abonatórias que poderia ter proferido sobre a ex-companheira. Vamos por partes. Que credibilidade merece um sujeito que, na posse desta e de tantas outras informações análogas, partilha enlevada e publicamente a existência com a dita mulher para posteriormente, atingido por uma imensa dor de corno, transformar as suas anteriores virtudes em incontornáveis e monstruosos defeitos? Por outro lado, que moral imaculada é a sua, que passado é o seu, para vir fazer a sagrada apologia do casamento? Ao que consta não respeitou o seu primeiro enlace matrimonial, nem se coibiu de ajudar a pôr fim ao de terceiros. Por último, quem é que pode deixar de sentir admiração por uma mulher que tem a coragem de colocar dois filhos neste mundo com tão pouca idade? Mereceria então mais credibilidade se tivesse optado por se livrar deles?! E já agora, alguém se preocupou, o sr. Jorge Nuno incluído, com os malefícios que todo este desvario provocou nas ditas crianças envolvidas? Tanto quanto se preocuparam na altura com os filhos do arquitecto Taveira, por exemplo, aqueles que revelaram a sua arrevesada intimidade. Suprema hipocrisia! Mundo cão!
Em suma, o país atravessa uma crise descomunal e quase todos enfrentamos problemas demasiado graves nas nossas vidas a nível financeiro, profissional, educativo e na área da saúde para nos deixarmos embalar com cantigas de escárnio e maldizer. Basta de engodos! Chega de futebol, putas e vinho verde!

(foto Martin Andreasen)

sexta-feira, julho 20, 2007

Elogio do beijo


Mesmo num contexto em que os olhos mintam indiferença e o sorriso insinue espontaneidade, enquanto palavras simulam fluir ao ritmo de copos que se esvaziam ou de espirais de fumo que volteiam cinzentas e o corpo se distrai mecanicamente em sintonia com o som, eis que surgem as rasteiras dos beijos para manter a pureza desse instinto primitivo que se não verga à mais rija vontade.
O apelo carnudo de lábios macios e húmidos, a vertigem de múltiplas sensações que nos atropelam, o gozo incomensurável de uma troca tão intensa e particular, transformam os beijos num acto único de partilha e de puro prazer, em que simultaneamente nos conhecemos e nos desvendamos com genuinidade.
Não admira assim que sejam inúmeros os que se tornaram emblemáticos ao longo dos tempos e que fazem já parte integrante do nosso imaginário colectivo, imortalizados nas mais diversas manifestações de arte ou descritos das formas mais poéticas, cruas ou fogosas.
Mas realmente inesquecíveis são os que preenchem as nossas vivências íntimas e nos fazem sentir, com todas as fibras do nosso corpo, que isto de estar vivo é por vezes tão mágico que transborda de nós e nos ultrapassa!
Há beijos que sabem a biscoitos de chocolate...

(quadro de Klimt, O Beijo)

quinta-feira, julho 12, 2007

Quando outros o dizem por nós melhor do que nós mesmos...


Ao Índio:

"sabes

por vezes queria beijar-te
sei que consentirias
mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado
porque os beijos apagam o desejo quando consentidos
foi melhor sabermos quanto nos queríamos
sem ousarmos sequer tocar em nossos corpos
hoje tenho pena
parto com essa ferida
tenho pena de não ter percorrido teu corpo
como percorro os mapas com os dedos teria viajado em ti
do pescoço às mãos da boca ao sexo
tenho pena de nunca ter murmurado o teu nome no escuro
acordado
perto de ti as noites teriam sido de ouro
e as mãos teriam guardado o sabor do teu corpo
ah meu amigo
estou definitivamente só"

Al Berto, Três Cartas da Memória das Índias

(foto Kenny Weng)

domingo, maio 20, 2007

Um homem no seu labirinto




O tipo foi convidado para uma festa de anos e esquivou-se. Disse ao amigo que estava mal de finanças, mas garantiu-lhe que lhe ligaria depois para beberem um copo e continuou a vegetar em frente ao ecrã onde, no momento, choviam sapos.
 Afinal era uma desculpa plausível, pois sabia-se que vivia ainda em casa da mãe e que sobrevivia à custa de biscates manhosos. Das poucas vezes que vinha à rua, era visto a massacrar as caixas do multibanco com combinações mirabolantes, tentando extorquir-lhes o que não possuía. Talvez se tratasse do seu Euromilhões pessoal, quem sabe, o certo é que se tornara uma diversão ímpar para os locais contemplar aquela batalha inusitada do homem com a tecnologia. No geral, temiam-no, alguns achavam-no um cromo difícil e outros consideravam-no tão simplesmente chanfrado, mas a verdade é que a ninguém era indiferente, mesmo quando poucos sabiam quem realmente era. E só os velhotes do bairro que iam enganando a morte a jogar à bisca lambida no coreto do jardim, enquanto os olhos escorriam saudosos pelos corpos ágeis e firmes das mulheres que passavam, nutriam por ele a costumeira simpatia dos desistentes face aos que ainda acreditam.
Esta personagem invulgar tinha a obsessão do cinema, pelo que sacava metodicamente filmes da Internet ou pirateava os que lhe chegavam às mãos. Juntava o útil ao agradável e fazia o comércio dos ciganos ladinos, vendendo a sua mercadoria a uma clientela sigilosa de olhos estragados e lentes de fundo de garrafa, todos cinéfilos pelintras e viciados em ilusões alheias. Tinha o quarto forrado de películas ordenadas por categorias, datas e realizadores e em cada mês encarnava ao pormenor o herói de um dos seus filmes de culto, pancada que começara aos doze anos tipo a menstruação, coisa continuada. Além disso, andava sempre atrelado a uma câmara que fanara em fedelho num curso de audiovisuais e filmava compulsivamente o que lhe parecia digno de registo ou o que lhe estimulava a imaginação. Entretanto retalhava tudo e entretinha-se a engendrar histórias tão intrincadas como as do Lynch, o que lhe dava um gozo tremendo e solitário. Era muito cioso desta sua obra secreta, pois tinha um pânico terrível da notoriedade, essa ladra da liberdade de ação que o anonimato faculta, mas acreditava numa conveniente genialidade póstuma, até porque em Portugal é empreitada estéril enveredar pela diferença quando não se tem padrinhos. Além do mais, e acima de tudo, repugnavam-lhe todos os críticos cinematográficos, por quem nutria um ódio figadal reavivado pela leitura assídua dos seus textos. Jamais se prostituiria ao ponto de ser alvo das suas dentadas canibalescas, preferindo já estar morto quando eles pudessem ferrá-lo de grande. Na sua ótica não passavam de uma chusma de pomposos impotentes e cruéis, dos quais se vingava puerilmente transformando-lhes as fotografias em caricaturas grotescas que colava no verso dos rolos de papel higiénico, aumentando assim o prazer de esvaziar as entranhas.
Pena era que um indivíduo tão sui generis tivesse que gerir as suas finanças como os merceeiros esmifrados de outros tempos, de lápis seboso atrás da orelha a fazer contas à vida, mas lá ia amealhando uns trocados para gastar nas viagens longas e aventurosas de onde surgiam as melhores imagens e inúmeras ideias para os seus filmes patchwork. Felizmente descobrira, ainda que a custo, ser esse o propósito para o qual nascera, pois muitos há que vivem em permanente anestesia e morrem sem ter descoberto porra nenhuma, quais comboios de corda sem bagagem que vão girando na prisão das calhas até ao dia em que estacam.
O certo é que, à conta de tantas e tão famosas bizarrias, a sua personalidade produzia os efeitos de uma planta carnívora no seio do betão suburbano, podendo até ser considerado como uma espécie de atração local. Isto desgostara durante tempos parte da sua família, em particular o irmão mais velho, arquiteto de renome criado pelos avós, que se gabava, entre outras baboseiras, de ter dormido no berço do potencial herdeiro da coroa lusitana. Tentara, por portas e travessas, encontrar um rumo para o mano tresmalhado, até se render à evidência de que a tarefa era inglória e optar tão simplesmente por cortar aquele ramo podre da árvore genealógica, dando a questão por encerrada.
Recuando ao liceu, o tipo tinha sido um aluno brilhante e plurifacetado, com tantos talentos que não sabia em qual investir. Por isso, desmultiplicava-se e pintava murais coloridos, redigia manifestos acutilantes, encabeçava protestos inflamados ou organizava festas memoráveis. E quando estava mais sossegado, manipulava terceiros com subtileza de modo a satisfazer, com pouco esforço, quaisquer intentos que tivesse em mente. Também tinha uma propensão natural para todo o tipo de engenhocas, o que dera muito jeito ao Clube de Rádio, por exemplo, pois montara as geringonças necessárias para a música se propagar pelo polivalente da escola. Porém, nunca estava realmente feliz, sendo minado por ânsias permanentes de diversidade que o impediam de se dedicar com afinco quer a propósitos, quer mesmo a criaturas. Faltava-lhe aquela parcela que dota os seres em geral para a entrega exclusiva, um defeito de fabrico de que se consciencializara desde cedo. Por outro lado, no término de qualquer proeza, subsistia sempre uma familiar insatisfação que lhe roubava parte do prazer e lhe trazia desalento ao rosto afilado. Mas até essa melancolia, que quase sempre o assombrava, revertia a seu favor, pois conferia-lhe uma aura de mistério que fascinava as pequenas e as grandes e as suas mamãs...
Não se podia então dizer que a vida lhe corresse mal nesse tempo, mas o certo é que o seu puzzle estava incompleto e a busca das peças em falta consumia-lhe tempo e energia. Como a mãe se empenhava na cruzada de encontrar um substituto adequado para o pai, pois cansara-se dos seus interlúdios horizontais e colocara-lhe os trapinhos ao vento, sobrava-lhe espaço de manobra e fôlego para o que lhe desse na real gana. Levava mesmo miúdas lá para casa sem contratempos de maior, exceto naquele sábado em que a mãezinha se tinha lembrado de lhe trazer o pequeno-almoço à cama e começara na palheta, porque não conseguira marcar as unhas para a hora habitual. E a outra enfiada no roupeiro em pelota, rija de frio e mais apetecível do que nunca, a debicar os bocadinhos de bolo que ele lhe esticava enquanto a mãe tagarelava da casa de banho. Manhã memorável essa, em que inadvertidamente inteirara os vizinhos da pujança da sua virilidade, pois o episódio excitara-os que nem cães vadios e a personagem de serviço nesse mês era o Sailor, do Wild at Heart, interpretado pelo Nicolas Cage. Mais tarde visitara-a com vinho e flores na expectativa do replay, mas levara uma corrida em pêlo do namorado, um latagão do basquete que fazia dois dele em comprimento e largura. Se a tipa preferia músculos a neurónios, paciência, gajas não lhe faltavam.
Tudo seguia portanto o seu curso natural e ele lá começou a assimilar que, fosse por sorte, acaso ou genética, afinal até se podia considerar um tipo privilegiado, mesmo tendo em conta a tanga do episódio dos chatos que pegara à namorada de um dos seus amigos. A festa em questão estava muito louca, já tinham mandado uns quantos adulterantes que produziam o desejado efeito de um cocktail molotov e, em poucas palavras, as sardas da miúda espevitada buliram-lhe com a virilidade. Acabaram a rebolar num quarto vazio da enorme vivenda sem pais, cujos filhos generosamente disponibilizaram à trupe, e tudo correu pelo melhor, exceto para os putos anfitriões, que tiveram que explicar a posteriori aos progenitores irados por que razão havia dois preservativos usados no seu leito sagrado. Dias depois, porém, ela abordou-o na rua e espetou-lhe duas valentes bofetadas na cara:
- Cabrão de merda, não tens vergonha? És um ganda porco! Pegaste-me a porra dos chatos nojentos que te sugam e agora o meu namorado descobriu que eu lhe pus os cornos. Mandou-me pastar de grande, o animal! E eu curto-o à brava, percebes cabrão? 
E acompanhava as lamúrias com murros inofensivos no peito dele, dados pelas suas mãos pequeninas de unhas perfeitas, numa fúria sardenta que ele achou deliciosa. Decidiu por isso abraçá-la e cobri-la de festas, percebendo finalmente que as comichões que andava a sentir não se deviam a uma suposta alergia ao novo detergente que a mãe agora usava. Acabaram na cama dele a catar-se solidária e amorosamente após uma queca valente, sendo que a paixão foi sol de pouca dura e, passado o tempo da praxe que o orgulho impõe, o namorado lá a aceitou de volta. Afinal a culpa fora das trampas que tinham mandado na treta da festa, o que pode acontecer a qualquer um, como o dito rapaz muito bem sabia por experiência própria. “Quem nunca pecou que mande a primeira pedra”, eis uma das poucas máximas que ainda recordava do tempo da catequese e que decidiu por bem pôr em prática, satisfazendo assim todas as partes envolvidas.
Até que chegou o dia em que, no cimo da serra verdejante, quando alguns amigalhaços decidiram baldar-se às aulas e alucinavam todos sob o efeito daquela a que em tempos os outros pirosos chamaram Lucy in the Sky with Diamonds, viu o seu melhor amigo lançar-se num ápice da escarpa mais alta. Gritava de felicidade que era um condor e, com os braços esticados em asa, ei-lo que se projeta no abismo de olhos esbugalhados e brilhantes. À semelhança de todas as coisas irreversíveis que nos acontecem, foi tudo excessivamente precipitado, como um gigantesco penso rápido a ser arrancado sem pré-aviso de uma zona peluda do corpo. Gerou-se o pânico entre os presentes, soaram estridências de meninas e o grupo, após o estupor inicial, dispersou como os grãos de areia durante a tempestade. Ficou sozinho, petrificado, a contemplar o espantalho desarticulado que estremecia ainda no fundo da ravina e a cismar que a vida, esse mistério inexplicável, se deveria cingir a uma câmara de projetar que agora recuasse de imediato, recomeçando aquele filme no ponto exato de evitar a tragédia. E foi aí que explodiu na sua cabeça um relâmpago de revelação íntima à Caeiro, o seu heterónimo predileto. Atingiu até ao âmago, de pêlos eriçados pelo medo e dentes a chocalhar de pavor, que o sentido oculto da vida é que a vida afinal não tem sentido oculto nenhum. Acaba assim, numa fração de segundos, como uma lâmpada que se funde. E então fugiu também numa correria desatinada, derradeiro abandono de amigo cobarde, deixando para trás a unha grande do pé que por lá ficou a fossilizar numa pedra. Nesse dia abriu-se dentro de si uma ferida que nunca mais sarou e que desviou irreversivelmente o curso do seu rio.
Inicialmente rapou o cabelo negro e anelado em sinal de luto, passou a vestir apenas túnicas singelas de linho áspero, arrumou de vez o calçado, com exceção das sandálias de pele às tirinhas, e nunca mais tocou em carne, pois lembrava-lhe a decomposição lenta e imparável do outro. Mais tarde, após concluir o liceu, abandonou a escola e decidiu que tinha que ir em busca do seu trilho, caso contrário, por mais que fizesse, viveria em permanente desassossego. Sentindo-se à deriva, eis que achou por bem ir meditar em jejum no cimo do telhado durante dias a fio, convicto que deveria escavacar o íntimo sem dó até alcançar o osso. Talvez nesse outro extremo, imagem especular do seu eu, encontrasse alguma resposta para a sua insatisfação. Curiosamente não teve qualquer rasgo de clarividência, constatando apenas que as telhas lhe magoavam o cu e que a vista até era bastante razoável. A dada altura, porém, já bastante fraco e quase em desespero de causa, lá atingiu finalmente que o que valia mesmo a pena era conhecer o mundo, a única realidade disponível mais plurifacetada do que ele próprio.
Decidiu então começar por Marrocos, por ser um país próximo mas culturalmente distinto, e foi à boleia até ao Algarve sem dificuldades de maior. Era já um homem alto e bem constituído, ainda que seco de carnes. No rosto ossudo, de traços vincados, destacava-se o queixo proeminente, que lhe conferia um ar determinado. A fragilidade que dele emanava só era desmentida pela voz bem timbrada e pela assertividade com que se exprimia, conseguindo mesmo ser bastante persuasivo. Tinha os olhos rasgados e pestanudos, de um verde cristalino mas gélido, os lábios bem delineados e sumarentos e umas mãos grandes, de dedos longos e esguios, ingredientes mais que sobejos para facilmente atrair as atenções femininas. Ainda assim, transmitia a frigidez própria de quem anda sempre a olhar para dentro, o que não deixava de ser intimidatório.
A coisa principiou bem, pois cruzou-se, na estação de serviço onde um amigo o deixara, com duas miúdas que iam em busca de uma aventura de Verão mais a sul e convenceu-as a transportá-lo a troco de nada, derramando sobre ambas o seu charme em proporções equitativas de modo a manter tudo em aberto e a estimular a rivalidade. Ao fim de meia hora estavam dentro do jeep dum filhinho de papá metido a garanhão, o primo da mais nova, que ainda torcera o nariz àquele penetra com ar de Cristo partido sem a trunfa correspondente, mas lá cedera aos insistentes pedidos das garotas.
Já no continente africano, depois de se ter livrado dos apêndices com a promessa de posterior contacto e generosos presentes, viajou em camionetas saltitantes que rangiam de esforço, atafulhadas de gente enroupada, bagagens impensáveis e moscas maiores do que o habitual. A miscelânea de cheiros naquela terra era quase intoxicante, prevalecendo um odor a especiarias e suor que se lhe entranharia para sempre na memória. As cores eram magníficas, em especial o ocre e o açafrão, e havia sempre uma poeira rarefeita e dourada a pairar sobre todas as coisas. Como não tinha paciência para lavar louça de restaurante sempre que queria beber água engarrafada, acabou por apanhar uma disenteria em Rabat que o deixou parecido com o que deveria ser agora o esqueleto do seu falecido amigo. Mas recuperou rapidamente com a ajuda da dona da pensão em que estava alojado, uma mulher submissa de rosto indistinto que lhe dava caldos de borrego e sumos de laranja. Este episódio acabou, aliás, por se revelar benéfico, uma vez que o organismo ganhou defesas e a água dos canos cessou de lhe dar volta às tripas.
Pegou nas trouxas e prosseguiu viagem, ávido de experiências e a derreter miseravelmente debaixo do sol agreste que lhe fritava os miolos. Persistente e metódico, embrenhou-se nos dédalos de todos os souks em busca de imagens inusitadas e, em Marraquexe, viu banquinhas de velhotes desdentados ironicamente repletas de sorridentes dentaduras de gengivas rosadas, a quem se pagava para filmá-las senão ficavam muito bravos e amaldiçoavam um tipo cuspindo para o chão. E viu talhos ao ar livre em que enormes peças de carne apodreciam pacificamente ao sol, acariciadas pelas patas dos mais variados insetos. Andou por todas as ruas, algumas tão estreitinhas que só cabia nelas uma pessoa de cada vez, e coseu-se à parede quando um homem gigantesco e esgazeado, qual personagem do Kusturika, perseguia outro de faca em riste. Misturou-se também nas mesquitas a horas proibidas, arriscando a pele bem tisnada pelo sol a troco de adrenalina, e bebeu chá com comerciantes do Atlas, homens simples que lhe ofereciam pequenos presentes para que não se fosse, na esperança de armazenar mais reservas contra a solidão. Estendeu-se em muitas camas para recuperar forças e nelas sentiu o peito encolher sempre que o som monocórdico e roufenho das rezas penetrava no quarto através dos altifalantes de outra época. Viu passarinhos a tombarem com o calor e os vapores da terra a fazerem dançar as imagens, pensando que ele próprio sucumbiria à canícula. Conheceu aldeias em que as casas eram escavadas nos promontórios argilosos e se fundiam completamente com a paisagem estéril e árida. E passou por lugares em que os velhotes se sentavam na soleira da porta, em posição de lótus, a fumar cachimbadas de haxixe para escapar ao cerco da monotonia, atividade em que os acompanhou prazenteiramente. Conheceu um oásis verdejante em plena desolação e apreendeu com alegria o genuíno significado desta palavra, pois nunca uma árvore lhe parecera tão verde e viva, nem uma flor tão suave e delicada, uma sombra tão protetora ou um golo de água tão revigorante. E a sua câmara foi captando toda aquela panóplia de imagens, gentes e emoções com entusiasmo febril, como se aquele material pudesse vir a dar uma reportagem com direito a Pulitzer, apesar de não ser esse o seu intento. Na sua cabeça delineava-se já o filme que engendraria um dia, testemunho do seu contacto com terras e gentes de Alá.
Mas foi só no deserto, a beber chá de menta encostado a um camelo malcheiroso, no meio das estrelas e do nada, que sentiu pela primeira vez na vida a paz interior que nasce da comunhão solitária e plena com a natureza e do corte com todos os laços, incluindo o que o unia si próprio. Era-lhe indiferente o que lhe pudesse vir a suceder, o que iria comer no dia seguinte ou para que lado se encontrava o norte, pois a sua bússola interior estava, por fim, afinada com o universo. Quase conseguiu desculpar-se pela morte do outro, já que, pensando bem, nem tivera tempo de fazer nada, tudo tão inusitado e fugaz... Mas não era aí que residia afinal a sua culpa. Percebeu que não se podia perdoar mesmo era por tê-lo abandonado sem explicar ao mundo a sua história, sem desmentir a voz corrente de que o amigo era mais um frustrado que desistira de ser feliz quando, no fundo, ele só tinha desejado captar outras dimensões de uma realidade que o transcendia e fascinava. Todos eles, aliás, só que o tipo tivera uma viagem marada, se calhar nascera numa noite sem lua e coubera-lhe em sorte acabar prematuramente a caminhada. E era mesmo o único ser com quem gostaria de partilhar aquele momento, o seu melhor amigo, quem sabe uma daquelas inúmeras estrelas brilhantes, olho de prata a vigiá-lo lá do alto. Nessa noite adormeceu tranquilo e prometeu a si próprio que, um dia, havia de encontrar uma forma de limpar a memória do outro.
Regressou a casa leve e preenchido, mas o apelo do desconhecido passara agora a ser mais forte e premente do que qualquer outro desejo que algum dia sentira, incluindo o carnal. Viciara-se na deambulação, no frenesim da descoberta, pelo que partiu e regressou dos trajetos mais improváveis inúmeras vezes, para constatar que a pele da mãe ia perdendo o brilho, o gato engordava pelos cantos e o sujeito que ocupava agora o cadeirão do pai era um grunho acéfalo com pinta de garanhão, que arrotava à mesa e não disfarçava o prazer de lhe ver as costas. Às vezes sucediam mesmo episódios surreais, como aquele em que se cansara de ver programas televisivos para sopeiras, nos grotescos serões familiares que a mãe lhe impingia, e espetara uma murraça direta no vidro da televisão, com direito a ko técnico para ambas as partes e uma tentativa frustrada de o levar ao psiquiatra. Ou o outro em que, cansado das banalidades do tipo e dos seus comentários cretinos pelo facto de não comer carne, arregaçara a manga e, pegando na faca que nunca usava, começara a fazer pequenos cortes superficiais no braço, calma e metodicamente. O sangue escorria em gotinhas vermelho vivo e misturava-se com o arroz branco, como pétalas pequeninas a cair sobre a neve. Agarrara então no garfo, mexera o arroz e continuara a comer, impávido e sereno, enquanto o sujeito desorbitava tipo peixe miúdo a olhar para um tubarão. Fora literalmente um golpe de génio pois, desse dia em diante, o homenzito só repuxava os lábios para mostrar os dentes amarelados e irregulares, mantendo as cordas vocais em repouso.
Num dos seus regressos, desta feita da Índia onde permanecera cinco meses, percebeu que o seu próprio espólio potencialmente cinematográfico era já bem superior a quaisquer expectativas que inicialmente tivera. Tinha encontrado o seu rumo, inequivocamente, pelo que decidiu fazer uma viagem distinta das anteriores. Começara, pela primeira vez, uma relação digna desse nome e portanto não iria só, queria fazer um filme diferente. Ultrapassadas as barreiras económicas, graças aos cinéfilos pelintras e a muitas horas de pirataria, seguiu para Amesterdão com a namorada, uma garotinha ingénua que ele transformara em aprendiz de nómada e que partira airosamente, à revelia dos pais, em busca de vivências extravagantes.
A coisa principiara em grande, com concertos à beira rio, jantares aquecidos por velas, divagações em coffee shops e contemplação de quadros de Van Gohg que coloriam o imaginário. Tudo pontuado por noites de imensa ternura, em que ele descobria que os seus dedos eram finos fios de seda que afloravam docemente a pele suave da companheira e o seu corpo uma teia gigante e elástica que a envolvia docemente. Noites em que se fundiam em terna luxúria, numa harmonia tão perfeita que lhes apetecia congelar o tempo ou morrer assim. E em que depois conversavam horas a fio sem se aperceberem que o tempo deslizava, pois sentiam o mesmo prazer em escutar-se e estavam em sintonia. Percebiam-se sem esforço, identificavam-se no essencial, gente feliz unida pela cumplicidade e pelo desejo.
Mas breve o dinheiro acabou e era ainda distante a vontade de regressar a terras lusas. Por escassez de alternativas, foram encalhar num qualquer bar manhoso, ele ao balcão a servir paliativos e ela na cave a chibatar masoquistas, vestida de couro e esborratada como uma manicura dos subúrbios. Mantinha, ainda assim, uma ingenuidade intocável, fruto talvez do seu carácter dócil e da educação que recebera. Encarnava uma personagem perversa e decadente com a mesma naturalidade que venderia postais a turistas, sendo que esta atividade lhe proporcionava uma deliciosa sensação de superioridade. O seu braço frágil zurzia o chicote na carne de todo o tipo de seres, que se rendiam prazenteiramente e a olhavam com veneração e desejo. Vida dupla, atriz em filme real, o sonho de qualquer miúda com miolos de passarinho. Até os pais irromperem abruptamente no cenário e a transportarem para um quarto almofadado, onde lhe vidraram os olhos e assumiram o comando da sua vontade. A repetição do mesmo filme macabro num cenário distinto, protagonizado por outro dos raros seres que conseguira amar e que, de novo, se transformava num espantalho desarticulado perante a sua vontade impotente. E aí ele sentiu que qualquer coisa no seu peito, que anteriormente já estalara, se partia de vez, sendo que agora já não tinha mais forças para subir ao telhado e procurar uma nova saída.
Os animais refugiam-se na toca, os humanos recolhem-se entre quatro paredes e rodeiam-se do que mais gostam, ou do que melhor lhes distrai o espírito das sombras más e da perda gradual, mas consecutiva, que é a vida. O tipo descobriu uma forma de transformar o quarto no seu casulo intransponível, tornou-se praticamente imune ao exterior e passou a sair à rua apenas para o essencial. Como continuava sem trabalho fixo e estava habituado a desenvencilhar-se, descobriu diversas estratégias de sobrevivência algo bizarras e arranjou até um esquema quase infalível de sacar fundos à caixa estúpida da parede, esticando sempre religiosamente o dedo grande à publicidade impingida pelo ecrã. Nisto investia parte do seu tempo e a totalidade dos seus neurónios, apesar do esforço, até à data, se ter revelado infrutífero. No entanto, estava certo que um dia conseguiria apropriar-se de algum capital alheio, pelo que persistia esperançoso, pois não queria depender da caridade familiar e muito menos desistir dos seus projetos.
Após uma releitura da Metamorfose do Kafka, surgiu-lhe uma paixão inusitada por borboletas, seres etéreos que lhe coloriam a solidão e lhe esvoaçavam a mente para outras paragens, fugindo assim à persistência do cenário e ao confinamento do espaço. Povoou o quarto de vasos com flores e pratinhos com frutas de onde elas extraíam alimento, sentindo-se muito apaziguado a escarafunchar a terra e a mimar as plantas viçosas. Quando as bichinhas morriam, espalmava-as amorosamente sobre folhas de papel de seda e cravava-lhes alfinetes de cabeças brilhantes, eternizando a sua beleza fugaz. Entretanto, juntava o vício de devorar filmes ao lado prático de engorda das finanças e vendia mais do que muitas lojas, o que até lhe dava um certo peso na consciência pois defendia os direitos de autor. Mas, sobretudo, concentrava-se no seu grande projeto de vida, engendrando as suas películas mutiladas com as imagens que continham o que vira viver e com as que testemunhavam aquilo que ele próprio vivera. Retalhava-as para as ressuscitar, porque o seu próprio filme estava definitivamente lynchado e socorria-se da pertinaz ilusão que poderia refazê-lo à medida dos seus desejos.
O indivíduo pensou no amigo e no seu convite e sorriu para si próprio. Claro que jamais iria a aniversário algum, mas como agora estranhavam o facto de raramente sair de casa e lhe chateavam a molécula, tinha de agir com astúcia e apresentar desculpas plausíveis. Não queria que viessem de fininho tentar sacar o que lhe ia na cabeça, até porque o mais provável era apanharem um susto diabólico e decidirem pôr-se a milhas. Por muito que o contrariasse, a verdade é que precisava deles, pois convidava-os de vez em quando para irem lá ao quarto ver uns filmes e aproveitava para, subrepticiamente, lhes mostrar um dos seus, camuflado de Lynch ou de Cronenberg ou de Mike Leigh. Os tipos fingiam papar a marosca e dissertavam com sinceridade sobre as imagens, o enredo ou a trilha sonora sacada a putos de bandas de garagem, o que o ajudava no caminho a seguir visto que, se queria a notoriedade póstuma (a dos grandes!), tinha que pensar em todos os pormenores, até no seu público futuro. Desse lá por onde desse, não podia derrapar na mediocridade de descurar qualquer peça daquela engrenagem bem oleada que era o seu sonho. Por sorte, aqueles meus não eram estúpidos de todo e percebiam mesmo de filmes, portanto as suas opiniões eram uma mais-valia.
Acima de tudo, pensou ainda, era já hora de voltar a partir para a derradeira viagem, a apoteótica, a decisiva, pelo que estava fora de questão ir gastar dinheiro em jantares da treta. Desta feita seria a Patagónia e precisava de vender ainda muitos filmes a tipos de olhos estragados antes de zarpar. E, de mais a mais, o amigo não sabia, mas agora só comia aquilo que ele próprio cozinhava. À cautela!

(foto Julien Roumagnac)