O tipo foi convidado para uma festa de anos e esquivou-se. Disse ao amigo
que estava mal de finanças, mas garantiu-lhe que lhe ligaria depois para
beberem um copo e continuou a vegetar em frente ao ecrã onde, no momento,
choviam sapos.
Afinal era uma desculpa plausível,
pois sabia-se que vivia ainda em casa da mãe e que sobrevivia à custa de biscates
manhosos. Das poucas vezes que vinha à rua, era visto a massacrar as caixas do
multibanco com combinações mirabolantes, tentando extorquir-lhes o que não
possuía. Talvez se tratasse do seu
Euromilhões
pessoal, quem sabe, o certo é que se tornara uma diversão ímpar para os locais
contemplar aquela batalha inusitada do homem com a tecnologia. No geral,
temiam-no, alguns achavam-no um cromo difícil e outros consideravam-no tão
simplesmente chanfrado, mas a verdade é que a ninguém era indiferente, mesmo quando
poucos sabiam quem realmente era. E só os velhotes do bairro que iam enganando
a morte a jogar à bisca lambida no coreto do jardim, enquanto os olhos
escorriam saudosos pelos corpos ágeis e firmes das mulheres que passavam, nutriam
por ele a costumeira simpatia dos desistentes face aos que ainda acreditam.
Esta personagem invulgar tinha a obsessão do cinema, pelo que sacava
metodicamente filmes da Internet ou pirateava os que lhe chegavam às mãos.
Juntava o útil ao agradável e fazia o comércio dos ciganos ladinos, vendendo a
sua mercadoria a uma clientela sigilosa de olhos estragados e lentes de fundo
de garrafa, todos cinéfilos pelintras e viciados em ilusões alheias. Tinha o quarto
forrado de películas ordenadas por categorias, datas e realizadores e em cada
mês encarnava ao pormenor o herói de um dos seus filmes de culto, pancada que
começara aos doze anos tipo a menstruação, coisa continuada. Além disso, andava
sempre atrelado a uma câmara que fanara em fedelho num curso de audiovisuais e
filmava compulsivamente o que lhe parecia digno de registo ou o que lhe
estimulava a imaginação. Entretanto retalhava tudo e entretinha-se a engendrar
histórias tão intrincadas como as do Lynch, o que lhe dava um gozo tremendo e
solitário. Era muito cioso desta sua obra secreta, pois tinha um pânico
terrível da notoriedade, essa ladra da liberdade de ação que o anonimato faculta,
mas acreditava numa conveniente genialidade póstuma, até porque em Portugal é
empreitada estéril enveredar pela diferença quando não se tem padrinhos. Além
do mais, e acima de tudo, repugnavam-lhe todos os críticos cinematográficos,
por quem nutria um ódio figadal reavivado pela leitura assídua dos seus textos.
Jamais se prostituiria ao ponto de ser alvo das suas dentadas canibalescas,
preferindo já estar morto quando eles pudessem ferrá-lo de grande. Na sua ótica
não passavam de uma chusma de pomposos impotentes e cruéis, dos quais se
vingava puerilmente transformando-lhes as fotografias em caricaturas grotescas
que colava no verso dos rolos de papel higiénico, aumentando assim o prazer de
esvaziar as entranhas.
Pena era que um indivíduo tão
sui generis tivesse que gerir as suas
finanças como os merceeiros esmifrados de outros tempos, de lápis seboso atrás
da orelha a fazer contas à vida, mas lá ia amealhando uns trocados para gastar
nas viagens longas e aventurosas de onde surgiam as melhores imagens e inúmeras
ideias para os seus filmes
patchwork. Felizmente descobrira, ainda que a
custo, ser esse o propósito para o qual nascera, pois muitos há que vivem em
permanente anestesia e morrem sem ter descoberto porra nenhuma, quais comboios
de corda sem bagagem que vão girando na prisão das calhas até ao dia em que
estacam.
O certo é que, à conta de tantas e tão famosas bizarrias, a sua
personalidade produzia os efeitos de uma planta carnívora no seio do betão
suburbano, podendo até ser considerado como uma espécie de atração local. Isto
desgostara durante tempos parte da sua família, em particular o irmão mais
velho, arquiteto de renome criado pelos avós, que se gabava, entre outras
baboseiras, de ter dormido no berço do potencial herdeiro da coroa lusitana.
Tentara, por portas e travessas, encontrar um rumo para o mano tresmalhado, até
se render à evidência de que a tarefa era inglória e optar tão simplesmente por
cortar aquele ramo podre da árvore genealógica, dando a questão por encerrada.
Recuando ao liceu, o tipo tinha sido um aluno brilhante e plurifacetado, com
tantos talentos que não sabia em qual investir. Por isso, desmultiplicava-se e
pintava murais coloridos, redigia manifestos acutilantes, encabeçava protestos
inflamados ou organizava festas memoráveis. E quando estava mais sossegado,
manipulava terceiros com subtileza de modo a satisfazer, com pouco esforço,
quaisquer intentos que tivesse em mente. Também tinha uma propensão natural
para todo o tipo de engenhocas, o que dera muito jeito ao Clube de Rádio, por
exemplo, pois montara as geringonças necessárias para a música se propagar pelo
polivalente da escola. Porém, nunca estava realmente feliz, sendo minado por
ânsias permanentes de diversidade que o impediam de se dedicar com afinco quer
a propósitos, quer mesmo a criaturas. Faltava-lhe aquela parcela que dota os
seres em geral para a entrega exclusiva, um defeito de fabrico de que se
consciencializara desde cedo. Por outro lado, no término de qualquer proeza,
subsistia sempre uma familiar insatisfação que lhe roubava parte do prazer e
lhe trazia desalento ao rosto afilado. Mas até essa melancolia, que quase
sempre o assombrava, revertia a seu favor, pois conferia-lhe uma aura de
mistério que fascinava as pequenas e as grandes e as suas mamãs...
Não se podia então dizer que a vida lhe corresse mal nesse tempo, mas o
certo é que o seu
puzzle estava incompleto e a busca das peças em falta
consumia-lhe tempo e energia. Como a mãe se empenhava na cruzada de encontrar
um substituto adequado para o pai, pois cansara-se dos seus interlúdios
horizontais e colocara-lhe os trapinhos ao vento, sobrava-lhe espaço de manobra
e fôlego para o que lhe desse na real gana. Levava mesmo miúdas lá para casa sem
contratempos de maior, exceto naquele sábado em que a mãezinha se tinha
lembrado de lhe trazer o pequeno-almoço à cama e começara na palheta, porque
não conseguira marcar as unhas para a hora habitual. E a outra enfiada no
roupeiro em pelota, rija de frio e mais apetecível do que nunca, a debicar os bocadinhos
de bolo que ele lhe esticava enquanto a mãe tagarelava da casa de banho. Manhã
memorável essa, em que inadvertidamente inteirara os vizinhos da pujança da sua
virilidade, pois o episódio excitara-os que nem cães vadios e a personagem de
serviço nesse mês era o Sailor, do
Wild at Heart,
interpretado pelo Nicolas Cage. Mais tarde visitara-a
com vinho e flores na expectativa do
replay,
mas levara uma corrida em pêlo do namorado, um latagão do basquete que fazia
dois dele em comprimento e largura. Se a tipa preferia músculos a neurónios,
paciência, gajas não lhe faltavam.
Tudo seguia portanto o seu curso natural e ele lá começou a assimilar que,
fosse por sorte, acaso ou genética, afinal até se podia considerar um tipo
privilegiado, mesmo tendo em conta a tanga do episódio dos chatos que pegara à
namorada de um dos seus amigos. A festa em questão estava muito louca, já
tinham mandado uns quantos adulterantes que produziam o desejado efeito de um
cocktail molotov e, em poucas palavras,
as sardas da miúda espevitada buliram-lhe com a virilidade. Acabaram a rebolar
num quarto vazio da enorme vivenda sem pais, cujos filhos generosamente
disponibilizaram à trupe, e tudo correu pelo melhor, exceto para os putos
anfitriões, que tiveram que explicar
a
posteriori aos progenitores irados por que razão havia dois preservativos
usados no seu leito sagrado. Dias depois, porém, ela abordou-o na rua e
espetou-lhe duas valentes bofetadas na cara:
- Cabrão de merda, não tens vergonha? És um
ganda porco! Pegaste-me a porra dos chatos nojentos que te sugam e
agora o meu namorado descobriu que eu lhe pus os cornos. Mandou-me pastar de
grande, o animal! E eu curto-o à brava, percebes cabrão?
E acompanhava as lamúrias com murros inofensivos no peito dele, dados pelas
suas mãos pequeninas de unhas perfeitas, numa fúria sardenta que ele achou
deliciosa. Decidiu por isso abraçá-la e cobri-la de festas, percebendo
finalmente que as comichões que andava a sentir não se deviam a uma suposta
alergia ao novo detergente que a mãe agora usava. Acabaram na cama dele a
catar-se solidária e amorosamente após uma queca valente, sendo que a paixão
foi sol de pouca dura e, passado o tempo da praxe que o orgulho impõe, o
namorado lá a aceitou de volta. Afinal a culpa fora das trampas que tinham
mandado na treta da festa, o que pode acontecer a qualquer um, como o dito
rapaz muito bem sabia por experiência própria. “Quem nunca pecou que mande a
primeira pedra”, eis uma das poucas máximas que ainda recordava do tempo da
catequese e que decidiu por bem pôr em prática, satisfazendo assim todas as
partes envolvidas.
Até que chegou o dia em que, no cimo da serra verdejante, quando alguns amigalhaços
decidiram baldar-se às aulas e alucinavam todos sob o efeito daquela a que em
tempos os outros pirosos chamaram
Lucy in the Sky with Diamonds, viu o
seu melhor amigo lançar-se num ápice da escarpa mais alta. Gritava de
felicidade que era um condor e, com os braços esticados em asa, ei-lo que se
projeta no abismo de olhos esbugalhados e brilhantes. À semelhança de todas as
coisas irreversíveis que nos acontecem, foi tudo excessivamente precipitado,
como um gigantesco penso rápido a ser arrancado sem pré-aviso de uma zona
peluda do corpo. Gerou-se o pânico entre os presentes, soaram estridências de
meninas e o grupo, após o estupor inicial, dispersou como os grãos de areia
durante a tempestade. Ficou sozinho, petrificado, a contemplar o espantalho
desarticulado que estremecia ainda no fundo da ravina e a cismar que a vida,
esse mistério inexplicável, se deveria cingir a uma câmara de projetar que agora
recuasse de imediato, recomeçando aquele filme no ponto exato de evitar a
tragédia. E foi aí que explodiu na sua cabeça um relâmpago de revelação íntima
à Caeiro, o seu heterónimo predileto. Atingiu até ao âmago, de pêlos eriçados
pelo medo e dentes a chocalhar de pavor, que o sentido oculto da vida é que a
vida afinal não tem sentido oculto nenhum. Acaba assim, numa fração de
segundos, como uma lâmpada que se funde. E então fugiu também numa correria
desatinada, derradeiro abandono de amigo cobarde, deixando para trás a unha
grande do pé que por lá ficou a fossilizar numa pedra. Nesse dia abriu-se dentro
de si uma ferida que nunca mais sarou e que desviou irreversivelmente o curso do
seu rio.
Inicialmente rapou o cabelo negro e anelado em sinal de luto, passou a
vestir apenas túnicas singelas de linho áspero, arrumou de vez o calçado, com
exceção das sandálias de pele às tirinhas, e nunca mais tocou em carne, pois
lembrava-lhe a decomposição lenta e imparável do outro. Mais tarde, após
concluir o liceu, abandonou a escola e decidiu que tinha que ir em busca do seu
trilho, caso contrário, por mais que fizesse, viveria em permanente
desassossego. Sentindo-se à deriva, eis que achou por bem ir meditar em jejum no
cimo do telhado durante dias a fio, convicto que deveria escavacar o íntimo sem
dó até alcançar o osso. Talvez nesse outro extremo, imagem especular do seu eu,
encontrasse alguma resposta para a sua insatisfação. Curiosamente não teve
qualquer rasgo de clarividência, constatando apenas que as telhas lhe magoavam
o cu e que a vista até era bastante razoável. A dada altura, porém, já bastante
fraco e quase em desespero de causa, lá atingiu finalmente que o que valia mesmo
a pena era conhecer o mundo, a única realidade disponível mais plurifacetada do
que ele próprio.
Decidiu então começar por Marrocos, por ser um país próximo mas
culturalmente distinto, e foi à boleia até ao Algarve sem dificuldades de maior.
Era já um homem alto e bem constituído, ainda que seco de carnes. No rosto
ossudo, de traços vincados, destacava-se o queixo proeminente, que lhe conferia
um ar determinado. A fragilidade que dele emanava só era desmentida pela voz
bem timbrada e pela assertividade com que se exprimia, conseguindo mesmo ser
bastante persuasivo. Tinha os olhos rasgados e pestanudos, de um verde
cristalino mas gélido, os lábios bem delineados e sumarentos e umas mãos
grandes, de dedos longos e esguios, ingredientes mais que sobejos para facilmente
atrair as atenções femininas. Ainda assim, transmitia a frigidez própria de
quem anda sempre a olhar para dentro, o que não deixava de ser intimidatório.
A coisa principiou bem, pois cruzou-se, na estação de serviço onde um amigo
o deixara, com duas miúdas que iam em busca de uma aventura de Verão mais a sul
e convenceu-as a transportá-lo a troco de nada, derramando sobre ambas o seu charme
em proporções equitativas de modo a manter tudo em aberto e a estimular a rivalidade.
Ao fim de meia hora estavam dentro do
jeep
dum filhinho de papá metido a garanhão, o primo da mais nova, que ainda torcera
o nariz àquele penetra com ar de Cristo partido sem a trunfa correspondente,
mas lá cedera aos insistentes pedidos das garotas.
Já no continente africano, depois de se ter livrado dos apêndices com a
promessa de posterior contacto e generosos presentes, viajou em camionetas
saltitantes que rangiam de esforço, atafulhadas de gente enroupada, bagagens
impensáveis e moscas maiores do que o habitual. A miscelânea de cheiros naquela
terra era quase intoxicante, prevalecendo um odor a especiarias e suor que se
lhe entranharia para sempre na memória. As cores eram magníficas, em especial o
ocre e o açafrão, e havia sempre uma poeira rarefeita e dourada a pairar sobre
todas as coisas. Como não tinha paciência para lavar louça de restaurante
sempre que queria beber água engarrafada, acabou por apanhar uma disenteria em
Rabat que o deixou parecido com o que deveria ser agora o esqueleto do seu falecido
amigo. Mas recuperou rapidamente com a ajuda da dona da pensão em que estava
alojado, uma mulher submissa de rosto indistinto que lhe dava caldos de borrego
e sumos de laranja. Este episódio acabou, aliás, por se revelar benéfico, uma
vez que o organismo ganhou defesas e a água dos canos cessou de lhe dar volta
às tripas.
Pegou nas trouxas e prosseguiu viagem, ávido de experiências e a derreter
miseravelmente debaixo do sol agreste que lhe fritava os miolos. Persistente e
metódico, embrenhou-se nos dédalos de todos os
souks em busca de imagens inusitadas e, em
Marraquexe, viu banquinhas de velhotes desdentados ironicamente repletas
de sorridentes dentaduras de gengivas rosadas, a quem se pagava para filmá-las senão
ficavam muito bravos e amaldiçoavam um tipo cuspindo para o chão. E viu talhos
ao ar livre em que enormes peças de carne apodreciam pacificamente ao sol,
acariciadas pelas patas dos mais variados insetos. Andou por todas as ruas,
algumas tão estreitinhas que só cabia nelas uma pessoa de cada vez, e coseu-se
à parede quando um homem gigantesco e esgazeado, qual personagem do Kusturika,
perseguia outro de faca em riste. Misturou-se também nas mesquitas a horas
proibidas, arriscando a pele bem tisnada pelo sol a troco de adrenalina, e
bebeu chá com comerciantes do Atlas, homens simples que lhe ofereciam pequenos
presentes para que não se fosse, na esperança de armazenar mais reservas contra
a solidão. Estendeu-se em muitas camas para recuperar forças e nelas sentiu o
peito encolher sempre que o som monocórdico e roufenho das rezas penetrava no
quarto através dos altifalantes de outra época. Viu passarinhos a tombarem com
o calor e os vapores da terra a fazerem dançar as imagens, pensando que ele
próprio sucumbiria à canícula. Conheceu aldeias em que as casas eram escavadas
nos promontórios argilosos e se fundiam completamente com a paisagem estéril e
árida. E passou por lugares em que os velhotes se sentavam na soleira da porta,
em posição de lótus, a fumar cachimbadas de haxixe para escapar ao cerco da
monotonia, atividade em que os acompanhou prazenteiramente. Conheceu um oásis
verdejante em plena desolação e apreendeu com alegria o genuíno significado
desta palavra, pois nunca uma árvore lhe parecera tão verde e viva, nem uma
flor tão suave e delicada, uma sombra tão protetora ou um golo de água tão
revigorante. E a sua câmara foi captando toda aquela panóplia de imagens,
gentes e emoções com entusiasmo febril, como se aquele material pudesse vir a
dar uma reportagem com direito a
Pulitzer, apesar de não ser esse o seu intento. Na sua cabeça
delineava-se já o filme que engendraria um dia, testemunho do seu contacto com
terras e gentes de Alá.
Mas foi só no deserto, a beber chá de menta encostado a um camelo
malcheiroso, no meio das estrelas e do nada, que sentiu pela primeira vez na
vida a paz interior que nasce da comunhão solitária e plena com a natureza e do
corte com todos os laços, incluindo o que o unia si próprio. Era-lhe
indiferente o que lhe pudesse vir a suceder, o que iria comer no dia seguinte
ou para que lado se encontrava o norte, pois a sua bússola interior estava, por
fim, afinada com o universo. Quase conseguiu desculpar-se pela morte do outro,
já que, pensando bem, nem tivera tempo de fazer nada, tudo tão inusitado e
fugaz... Mas não era aí que residia afinal a sua culpa. Percebeu que não se
podia perdoar mesmo era por tê-lo abandonado sem explicar ao mundo a sua
história, sem desmentir a voz corrente de que o amigo era mais um frustrado que
desistira de ser feliz quando, no fundo, ele só tinha desejado captar outras
dimensões de uma realidade que o transcendia e fascinava. Todos eles, aliás, só
que o tipo tivera uma viagem marada, se calhar nascera numa noite sem lua e
coubera-lhe em sorte acabar prematuramente a caminhada. E era mesmo o único ser
com quem gostaria de partilhar aquele momento, o seu melhor amigo, quem sabe
uma daquelas inúmeras estrelas brilhantes, olho de prata a vigiá-lo lá do alto.
Nessa noite adormeceu tranquilo e prometeu a si próprio que, um dia, havia de encontrar
uma forma de limpar a memória do outro.
Regressou a casa leve e preenchido, mas o apelo do desconhecido passara agora
a ser mais forte e premente do que qualquer outro desejo que algum dia sentira,
incluindo o carnal. Viciara-se na deambulação, no frenesim da descoberta, pelo
que partiu e regressou dos trajetos mais improváveis inúmeras vezes, para constatar
que a pele da mãe ia perdendo o brilho, o gato engordava pelos cantos e o
sujeito que ocupava agora o cadeirão do pai era um grunho acéfalo com pinta de
garanhão, que arrotava à mesa e não disfarçava o prazer de lhe ver as costas.
Às vezes sucediam mesmo episódios surreais, como aquele em que se cansara de
ver programas televisivos para sopeiras, nos grotescos serões familiares que a
mãe lhe impingia, e espetara uma murraça direta no vidro da televisão, com
direito a
ko técnico para ambas as partes e uma tentativa frustrada de o
levar ao psiquiatra. Ou o outro em que, cansado das banalidades do tipo e dos
seus comentários cretinos pelo facto de não comer carne, arregaçara a manga e,
pegando na faca que nunca usava, começara a fazer pequenos cortes superficiais
no braço, calma e metodicamente. O sangue escorria em gotinhas vermelho vivo e
misturava-se com o arroz branco, como pétalas pequeninas a cair sobre a neve.
Agarrara então no garfo, mexera o arroz e continuara a comer, impávido e
sereno, enquanto o sujeito desorbitava tipo peixe miúdo a olhar para um
tubarão. Fora literalmente um golpe de génio pois, desse dia em diante, o
homenzito só repuxava os lábios para mostrar os dentes amarelados e
irregulares, mantendo as cordas vocais em repouso.
Num dos seus regressos, desta feita da Índia onde permanecera cinco meses,
percebeu que o seu próprio espólio potencialmente cinematográfico era já bem
superior a quaisquer expectativas que inicialmente tivera. Tinha encontrado o
seu rumo, inequivocamente, pelo que decidiu fazer uma viagem distinta das
anteriores. Começara, pela primeira vez, uma relação digna desse nome e
portanto não iria só, queria fazer um filme diferente. Ultrapassadas as
barreiras económicas, graças aos cinéfilos pelintras e a muitas horas de
pirataria, seguiu para Amesterdão com a namorada, uma garotinha ingénua que ele
transformara em aprendiz de nómada e que partira airosamente, à revelia dos
pais, em busca de vivências extravagantes.
A coisa principiara em grande, com concertos à beira rio, jantares aquecidos
por velas, divagações em
coffee shops e contemplação de quadros de Van
Gohg que coloriam o imaginário. Tudo pontuado por noites de imensa ternura, em
que ele descobria que os seus dedos eram finos fios de seda que afloravam
docemente a pele suave da companheira e o seu corpo uma teia gigante e elástica
que a envolvia docemente. Noites em que se fundiam em terna luxúria, numa
harmonia tão perfeita que lhes apetecia congelar o tempo ou morrer assim. E em
que depois conversavam horas a fio sem se aperceberem que o tempo deslizava,
pois sentiam o mesmo prazer em escutar-se e estavam em sintonia. Percebiam-se
sem esforço, identificavam-se no essencial, gente feliz unida pela cumplicidade
e pelo desejo.
Mas breve o dinheiro acabou e era ainda distante a vontade de regressar a
terras lusas. Por escassez de alternativas, foram encalhar num qualquer bar
manhoso, ele ao balcão a servir paliativos e ela na cave a chibatar
masoquistas, vestida de couro e esborratada como uma manicura dos subúrbios.
Mantinha, ainda assim, uma ingenuidade intocável, fruto talvez do seu carácter
dócil e da educação que recebera. Encarnava uma personagem perversa e decadente
com a mesma naturalidade que venderia postais a turistas, sendo que esta atividade
lhe proporcionava uma deliciosa sensação de superioridade. O seu braço frágil
zurzia o chicote na carne de todo o tipo de seres, que se rendiam prazenteiramente
e a olhavam com veneração e desejo. Vida dupla, atriz em filme real, o sonho de
qualquer miúda com miolos de passarinho. Até os pais irromperem abruptamente no
cenário e a transportarem para um quarto almofadado, onde lhe vidraram os olhos
e assumiram o comando da sua vontade. A repetição do mesmo filme macabro num
cenário distinto, protagonizado por outro dos raros seres que conseguira amar e
que, de novo, se transformava num espantalho desarticulado perante a sua
vontade impotente. E aí ele sentiu que qualquer coisa no seu peito, que
anteriormente já estalara, se partia de vez, sendo que agora já não tinha mais
forças para subir ao telhado e procurar uma nova saída.
Os animais refugiam-se na toca, os humanos recolhem-se entre quatro paredes
e rodeiam-se do que mais gostam, ou do que melhor lhes distrai o espírito das
sombras más e da perda gradual, mas consecutiva, que é a vida. O tipo descobriu
uma forma de transformar o quarto no seu casulo intransponível, tornou-se
praticamente imune ao exterior e passou a sair à rua apenas para o essencial.
Como continuava sem trabalho fixo e estava habituado a desenvencilhar-se,
descobriu diversas estratégias de sobrevivência algo bizarras e arranjou até um
esquema quase infalível de sacar fundos à caixa estúpida da parede, esticando
sempre religiosamente o dedo grande à publicidade impingida pelo ecrã. Nisto
investia parte do seu tempo e a totalidade dos seus neurónios, apesar do
esforço, até à data, se ter revelado infrutífero. No entanto, estava certo que
um dia conseguiria apropriar-se de algum capital alheio, pelo que persistia
esperançoso, pois não queria depender da caridade familiar e muito menos
desistir dos seus projetos.
Após uma releitura da
Metamorfose
do Kafka, surgiu-lhe uma paixão inusitada por borboletas, seres etéreos que lhe
coloriam a solidão e lhe esvoaçavam a mente para outras paragens, fugindo assim
à persistência do cenário e ao confinamento do espaço. Povoou o quarto de vasos
com flores e pratinhos com frutas de onde elas extraíam alimento, sentindo-se muito
apaziguado a escarafunchar a terra e a mimar as plantas viçosas. Quando as
bichinhas morriam, espalmava-as amorosamente sobre folhas de papel de seda e
cravava-lhes alfinetes de cabeças brilhantes, eternizando a sua beleza fugaz. Entretanto,
juntava o vício de devorar filmes ao lado prático de engorda das finanças e
vendia mais do que muitas lojas, o que até lhe dava um certo peso na
consciência pois defendia os direitos de autor. Mas, sobretudo, concentrava-se no
seu grande projeto de vida, engendrando as suas películas mutiladas com as
imagens que continham o que vira viver e com as que testemunhavam aquilo que
ele próprio vivera. Retalhava-as para as ressuscitar, porque o seu próprio
filme estava definitivamente
lynchado e socorria-se da pertinaz ilusão
que poderia refazê-lo à medida dos seus desejos.
O indivíduo pensou no amigo e no seu convite e sorriu para si próprio. Claro
que jamais iria a aniversário algum, mas como agora estranhavam o facto de
raramente sair de casa e lhe chateavam a molécula, tinha de agir com astúcia e
apresentar desculpas plausíveis. Não queria que viessem de fininho tentar sacar
o que lhe ia na cabeça, até porque o mais provável era apanharem um susto
diabólico e decidirem pôr-se a milhas. Por muito que o contrariasse, a verdade
é que precisava deles, pois convidava-os de vez em quando para irem lá ao
quarto ver uns filmes e aproveitava para, subrepticiamente, lhes mostrar um dos
seus, camuflado de Lynch ou de Cronenberg ou de Mike Leigh. Os tipos fingiam
papar a marosca e dissertavam com sinceridade sobre as imagens, o enredo ou a
trilha sonora sacada a putos de bandas de garagem, o que o ajudava no caminho a
seguir visto que, se queria a notoriedade póstuma (a dos grandes!), tinha que
pensar em todos os pormenores, até no seu público futuro. Desse lá por onde
desse, não podia derrapar na mediocridade de descurar qualquer peça daquela
engrenagem bem oleada que era o seu sonho. Por sorte, aqueles
meus não
eram estúpidos de todo e percebiam mesmo de filmes, portanto as suas opiniões
eram uma mais-valia.
Acima de tudo, pensou ainda, era já hora de voltar a partir para a
derradeira viagem, a apoteótica, a decisiva, pelo que estava fora de questão ir
gastar dinheiro em jantares da treta. Desta feita seria a Patagónia e precisava
de vender ainda muitos filmes a tipos de olhos estragados antes de zarpar. E, de
mais a mais, o amigo não sabia, mas agora só comia aquilo que ele próprio
cozinhava. À cautela!