domingo, maio 20, 2007

Um homem no seu labirinto




O tipo foi convidado para uma festa de anos e esquivou-se. Disse ao amigo que estava mal de finanças, mas garantiu-lhe que lhe ligaria depois para beberem um copo e continuou a vegetar em frente ao ecrã onde, no momento, choviam sapos.
 Afinal era uma desculpa plausível, pois sabia-se que vivia ainda em casa da mãe e que sobrevivia à custa de biscates manhosos. Das poucas vezes que vinha à rua, era visto a massacrar as caixas do multibanco com combinações mirabolantes, tentando extorquir-lhes o que não possuía. Talvez se tratasse do seu Euromilhões pessoal, quem sabe, o certo é que se tornara uma diversão ímpar para os locais contemplar aquela batalha inusitada do homem com a tecnologia. No geral, temiam-no, alguns achavam-no um cromo difícil e outros consideravam-no tão simplesmente chanfrado, mas a verdade é que a ninguém era indiferente, mesmo quando poucos sabiam quem realmente era. E só os velhotes do bairro que iam enganando a morte a jogar à bisca lambida no coreto do jardim, enquanto os olhos escorriam saudosos pelos corpos ágeis e firmes das mulheres que passavam, nutriam por ele a costumeira simpatia dos desistentes face aos que ainda acreditam.
Esta personagem invulgar tinha a obsessão do cinema, pelo que sacava metodicamente filmes da Internet ou pirateava os que lhe chegavam às mãos. Juntava o útil ao agradável e fazia o comércio dos ciganos ladinos, vendendo a sua mercadoria a uma clientela sigilosa de olhos estragados e lentes de fundo de garrafa, todos cinéfilos pelintras e viciados em ilusões alheias. Tinha o quarto forrado de películas ordenadas por categorias, datas e realizadores e em cada mês encarnava ao pormenor o herói de um dos seus filmes de culto, pancada que começara aos doze anos tipo a menstruação, coisa continuada. Além disso, andava sempre atrelado a uma câmara que fanara em fedelho num curso de audiovisuais e filmava compulsivamente o que lhe parecia digno de registo ou o que lhe estimulava a imaginação. Entretanto retalhava tudo e entretinha-se a engendrar histórias tão intrincadas como as do Lynch, o que lhe dava um gozo tremendo e solitário. Era muito cioso desta sua obra secreta, pois tinha um pânico terrível da notoriedade, essa ladra da liberdade de ação que o anonimato faculta, mas acreditava numa conveniente genialidade póstuma, até porque em Portugal é empreitada estéril enveredar pela diferença quando não se tem padrinhos. Além do mais, e acima de tudo, repugnavam-lhe todos os críticos cinematográficos, por quem nutria um ódio figadal reavivado pela leitura assídua dos seus textos. Jamais se prostituiria ao ponto de ser alvo das suas dentadas canibalescas, preferindo já estar morto quando eles pudessem ferrá-lo de grande. Na sua ótica não passavam de uma chusma de pomposos impotentes e cruéis, dos quais se vingava puerilmente transformando-lhes as fotografias em caricaturas grotescas que colava no verso dos rolos de papel higiénico, aumentando assim o prazer de esvaziar as entranhas.
Pena era que um indivíduo tão sui generis tivesse que gerir as suas finanças como os merceeiros esmifrados de outros tempos, de lápis seboso atrás da orelha a fazer contas à vida, mas lá ia amealhando uns trocados para gastar nas viagens longas e aventurosas de onde surgiam as melhores imagens e inúmeras ideias para os seus filmes patchwork. Felizmente descobrira, ainda que a custo, ser esse o propósito para o qual nascera, pois muitos há que vivem em permanente anestesia e morrem sem ter descoberto porra nenhuma, quais comboios de corda sem bagagem que vão girando na prisão das calhas até ao dia em que estacam.
O certo é que, à conta de tantas e tão famosas bizarrias, a sua personalidade produzia os efeitos de uma planta carnívora no seio do betão suburbano, podendo até ser considerado como uma espécie de atração local. Isto desgostara durante tempos parte da sua família, em particular o irmão mais velho, arquiteto de renome criado pelos avós, que se gabava, entre outras baboseiras, de ter dormido no berço do potencial herdeiro da coroa lusitana. Tentara, por portas e travessas, encontrar um rumo para o mano tresmalhado, até se render à evidência de que a tarefa era inglória e optar tão simplesmente por cortar aquele ramo podre da árvore genealógica, dando a questão por encerrada.
Recuando ao liceu, o tipo tinha sido um aluno brilhante e plurifacetado, com tantos talentos que não sabia em qual investir. Por isso, desmultiplicava-se e pintava murais coloridos, redigia manifestos acutilantes, encabeçava protestos inflamados ou organizava festas memoráveis. E quando estava mais sossegado, manipulava terceiros com subtileza de modo a satisfazer, com pouco esforço, quaisquer intentos que tivesse em mente. Também tinha uma propensão natural para todo o tipo de engenhocas, o que dera muito jeito ao Clube de Rádio, por exemplo, pois montara as geringonças necessárias para a música se propagar pelo polivalente da escola. Porém, nunca estava realmente feliz, sendo minado por ânsias permanentes de diversidade que o impediam de se dedicar com afinco quer a propósitos, quer mesmo a criaturas. Faltava-lhe aquela parcela que dota os seres em geral para a entrega exclusiva, um defeito de fabrico de que se consciencializara desde cedo. Por outro lado, no término de qualquer proeza, subsistia sempre uma familiar insatisfação que lhe roubava parte do prazer e lhe trazia desalento ao rosto afilado. Mas até essa melancolia, que quase sempre o assombrava, revertia a seu favor, pois conferia-lhe uma aura de mistério que fascinava as pequenas e as grandes e as suas mamãs...
Não se podia então dizer que a vida lhe corresse mal nesse tempo, mas o certo é que o seu puzzle estava incompleto e a busca das peças em falta consumia-lhe tempo e energia. Como a mãe se empenhava na cruzada de encontrar um substituto adequado para o pai, pois cansara-se dos seus interlúdios horizontais e colocara-lhe os trapinhos ao vento, sobrava-lhe espaço de manobra e fôlego para o que lhe desse na real gana. Levava mesmo miúdas lá para casa sem contratempos de maior, exceto naquele sábado em que a mãezinha se tinha lembrado de lhe trazer o pequeno-almoço à cama e começara na palheta, porque não conseguira marcar as unhas para a hora habitual. E a outra enfiada no roupeiro em pelota, rija de frio e mais apetecível do que nunca, a debicar os bocadinhos de bolo que ele lhe esticava enquanto a mãe tagarelava da casa de banho. Manhã memorável essa, em que inadvertidamente inteirara os vizinhos da pujança da sua virilidade, pois o episódio excitara-os que nem cães vadios e a personagem de serviço nesse mês era o Sailor, do Wild at Heart, interpretado pelo Nicolas Cage. Mais tarde visitara-a com vinho e flores na expectativa do replay, mas levara uma corrida em pêlo do namorado, um latagão do basquete que fazia dois dele em comprimento e largura. Se a tipa preferia músculos a neurónios, paciência, gajas não lhe faltavam.
Tudo seguia portanto o seu curso natural e ele lá começou a assimilar que, fosse por sorte, acaso ou genética, afinal até se podia considerar um tipo privilegiado, mesmo tendo em conta a tanga do episódio dos chatos que pegara à namorada de um dos seus amigos. A festa em questão estava muito louca, já tinham mandado uns quantos adulterantes que produziam o desejado efeito de um cocktail molotov e, em poucas palavras, as sardas da miúda espevitada buliram-lhe com a virilidade. Acabaram a rebolar num quarto vazio da enorme vivenda sem pais, cujos filhos generosamente disponibilizaram à trupe, e tudo correu pelo melhor, exceto para os putos anfitriões, que tiveram que explicar a posteriori aos progenitores irados por que razão havia dois preservativos usados no seu leito sagrado. Dias depois, porém, ela abordou-o na rua e espetou-lhe duas valentes bofetadas na cara:
- Cabrão de merda, não tens vergonha? És um ganda porco! Pegaste-me a porra dos chatos nojentos que te sugam e agora o meu namorado descobriu que eu lhe pus os cornos. Mandou-me pastar de grande, o animal! E eu curto-o à brava, percebes cabrão? 
E acompanhava as lamúrias com murros inofensivos no peito dele, dados pelas suas mãos pequeninas de unhas perfeitas, numa fúria sardenta que ele achou deliciosa. Decidiu por isso abraçá-la e cobri-la de festas, percebendo finalmente que as comichões que andava a sentir não se deviam a uma suposta alergia ao novo detergente que a mãe agora usava. Acabaram na cama dele a catar-se solidária e amorosamente após uma queca valente, sendo que a paixão foi sol de pouca dura e, passado o tempo da praxe que o orgulho impõe, o namorado lá a aceitou de volta. Afinal a culpa fora das trampas que tinham mandado na treta da festa, o que pode acontecer a qualquer um, como o dito rapaz muito bem sabia por experiência própria. “Quem nunca pecou que mande a primeira pedra”, eis uma das poucas máximas que ainda recordava do tempo da catequese e que decidiu por bem pôr em prática, satisfazendo assim todas as partes envolvidas.
Até que chegou o dia em que, no cimo da serra verdejante, quando alguns amigalhaços decidiram baldar-se às aulas e alucinavam todos sob o efeito daquela a que em tempos os outros pirosos chamaram Lucy in the Sky with Diamonds, viu o seu melhor amigo lançar-se num ápice da escarpa mais alta. Gritava de felicidade que era um condor e, com os braços esticados em asa, ei-lo que se projeta no abismo de olhos esbugalhados e brilhantes. À semelhança de todas as coisas irreversíveis que nos acontecem, foi tudo excessivamente precipitado, como um gigantesco penso rápido a ser arrancado sem pré-aviso de uma zona peluda do corpo. Gerou-se o pânico entre os presentes, soaram estridências de meninas e o grupo, após o estupor inicial, dispersou como os grãos de areia durante a tempestade. Ficou sozinho, petrificado, a contemplar o espantalho desarticulado que estremecia ainda no fundo da ravina e a cismar que a vida, esse mistério inexplicável, se deveria cingir a uma câmara de projetar que agora recuasse de imediato, recomeçando aquele filme no ponto exato de evitar a tragédia. E foi aí que explodiu na sua cabeça um relâmpago de revelação íntima à Caeiro, o seu heterónimo predileto. Atingiu até ao âmago, de pêlos eriçados pelo medo e dentes a chocalhar de pavor, que o sentido oculto da vida é que a vida afinal não tem sentido oculto nenhum. Acaba assim, numa fração de segundos, como uma lâmpada que se funde. E então fugiu também numa correria desatinada, derradeiro abandono de amigo cobarde, deixando para trás a unha grande do pé que por lá ficou a fossilizar numa pedra. Nesse dia abriu-se dentro de si uma ferida que nunca mais sarou e que desviou irreversivelmente o curso do seu rio.
Inicialmente rapou o cabelo negro e anelado em sinal de luto, passou a vestir apenas túnicas singelas de linho áspero, arrumou de vez o calçado, com exceção das sandálias de pele às tirinhas, e nunca mais tocou em carne, pois lembrava-lhe a decomposição lenta e imparável do outro. Mais tarde, após concluir o liceu, abandonou a escola e decidiu que tinha que ir em busca do seu trilho, caso contrário, por mais que fizesse, viveria em permanente desassossego. Sentindo-se à deriva, eis que achou por bem ir meditar em jejum no cimo do telhado durante dias a fio, convicto que deveria escavacar o íntimo sem dó até alcançar o osso. Talvez nesse outro extremo, imagem especular do seu eu, encontrasse alguma resposta para a sua insatisfação. Curiosamente não teve qualquer rasgo de clarividência, constatando apenas que as telhas lhe magoavam o cu e que a vista até era bastante razoável. A dada altura, porém, já bastante fraco e quase em desespero de causa, lá atingiu finalmente que o que valia mesmo a pena era conhecer o mundo, a única realidade disponível mais plurifacetada do que ele próprio.
Decidiu então começar por Marrocos, por ser um país próximo mas culturalmente distinto, e foi à boleia até ao Algarve sem dificuldades de maior. Era já um homem alto e bem constituído, ainda que seco de carnes. No rosto ossudo, de traços vincados, destacava-se o queixo proeminente, que lhe conferia um ar determinado. A fragilidade que dele emanava só era desmentida pela voz bem timbrada e pela assertividade com que se exprimia, conseguindo mesmo ser bastante persuasivo. Tinha os olhos rasgados e pestanudos, de um verde cristalino mas gélido, os lábios bem delineados e sumarentos e umas mãos grandes, de dedos longos e esguios, ingredientes mais que sobejos para facilmente atrair as atenções femininas. Ainda assim, transmitia a frigidez própria de quem anda sempre a olhar para dentro, o que não deixava de ser intimidatório.
A coisa principiou bem, pois cruzou-se, na estação de serviço onde um amigo o deixara, com duas miúdas que iam em busca de uma aventura de Verão mais a sul e convenceu-as a transportá-lo a troco de nada, derramando sobre ambas o seu charme em proporções equitativas de modo a manter tudo em aberto e a estimular a rivalidade. Ao fim de meia hora estavam dentro do jeep dum filhinho de papá metido a garanhão, o primo da mais nova, que ainda torcera o nariz àquele penetra com ar de Cristo partido sem a trunfa correspondente, mas lá cedera aos insistentes pedidos das garotas.
Já no continente africano, depois de se ter livrado dos apêndices com a promessa de posterior contacto e generosos presentes, viajou em camionetas saltitantes que rangiam de esforço, atafulhadas de gente enroupada, bagagens impensáveis e moscas maiores do que o habitual. A miscelânea de cheiros naquela terra era quase intoxicante, prevalecendo um odor a especiarias e suor que se lhe entranharia para sempre na memória. As cores eram magníficas, em especial o ocre e o açafrão, e havia sempre uma poeira rarefeita e dourada a pairar sobre todas as coisas. Como não tinha paciência para lavar louça de restaurante sempre que queria beber água engarrafada, acabou por apanhar uma disenteria em Rabat que o deixou parecido com o que deveria ser agora o esqueleto do seu falecido amigo. Mas recuperou rapidamente com a ajuda da dona da pensão em que estava alojado, uma mulher submissa de rosto indistinto que lhe dava caldos de borrego e sumos de laranja. Este episódio acabou, aliás, por se revelar benéfico, uma vez que o organismo ganhou defesas e a água dos canos cessou de lhe dar volta às tripas.
Pegou nas trouxas e prosseguiu viagem, ávido de experiências e a derreter miseravelmente debaixo do sol agreste que lhe fritava os miolos. Persistente e metódico, embrenhou-se nos dédalos de todos os souks em busca de imagens inusitadas e, em Marraquexe, viu banquinhas de velhotes desdentados ironicamente repletas de sorridentes dentaduras de gengivas rosadas, a quem se pagava para filmá-las senão ficavam muito bravos e amaldiçoavam um tipo cuspindo para o chão. E viu talhos ao ar livre em que enormes peças de carne apodreciam pacificamente ao sol, acariciadas pelas patas dos mais variados insetos. Andou por todas as ruas, algumas tão estreitinhas que só cabia nelas uma pessoa de cada vez, e coseu-se à parede quando um homem gigantesco e esgazeado, qual personagem do Kusturika, perseguia outro de faca em riste. Misturou-se também nas mesquitas a horas proibidas, arriscando a pele bem tisnada pelo sol a troco de adrenalina, e bebeu chá com comerciantes do Atlas, homens simples que lhe ofereciam pequenos presentes para que não se fosse, na esperança de armazenar mais reservas contra a solidão. Estendeu-se em muitas camas para recuperar forças e nelas sentiu o peito encolher sempre que o som monocórdico e roufenho das rezas penetrava no quarto através dos altifalantes de outra época. Viu passarinhos a tombarem com o calor e os vapores da terra a fazerem dançar as imagens, pensando que ele próprio sucumbiria à canícula. Conheceu aldeias em que as casas eram escavadas nos promontórios argilosos e se fundiam completamente com a paisagem estéril e árida. E passou por lugares em que os velhotes se sentavam na soleira da porta, em posição de lótus, a fumar cachimbadas de haxixe para escapar ao cerco da monotonia, atividade em que os acompanhou prazenteiramente. Conheceu um oásis verdejante em plena desolação e apreendeu com alegria o genuíno significado desta palavra, pois nunca uma árvore lhe parecera tão verde e viva, nem uma flor tão suave e delicada, uma sombra tão protetora ou um golo de água tão revigorante. E a sua câmara foi captando toda aquela panóplia de imagens, gentes e emoções com entusiasmo febril, como se aquele material pudesse vir a dar uma reportagem com direito a Pulitzer, apesar de não ser esse o seu intento. Na sua cabeça delineava-se já o filme que engendraria um dia, testemunho do seu contacto com terras e gentes de Alá.
Mas foi só no deserto, a beber chá de menta encostado a um camelo malcheiroso, no meio das estrelas e do nada, que sentiu pela primeira vez na vida a paz interior que nasce da comunhão solitária e plena com a natureza e do corte com todos os laços, incluindo o que o unia si próprio. Era-lhe indiferente o que lhe pudesse vir a suceder, o que iria comer no dia seguinte ou para que lado se encontrava o norte, pois a sua bússola interior estava, por fim, afinada com o universo. Quase conseguiu desculpar-se pela morte do outro, já que, pensando bem, nem tivera tempo de fazer nada, tudo tão inusitado e fugaz... Mas não era aí que residia afinal a sua culpa. Percebeu que não se podia perdoar mesmo era por tê-lo abandonado sem explicar ao mundo a sua história, sem desmentir a voz corrente de que o amigo era mais um frustrado que desistira de ser feliz quando, no fundo, ele só tinha desejado captar outras dimensões de uma realidade que o transcendia e fascinava. Todos eles, aliás, só que o tipo tivera uma viagem marada, se calhar nascera numa noite sem lua e coubera-lhe em sorte acabar prematuramente a caminhada. E era mesmo o único ser com quem gostaria de partilhar aquele momento, o seu melhor amigo, quem sabe uma daquelas inúmeras estrelas brilhantes, olho de prata a vigiá-lo lá do alto. Nessa noite adormeceu tranquilo e prometeu a si próprio que, um dia, havia de encontrar uma forma de limpar a memória do outro.
Regressou a casa leve e preenchido, mas o apelo do desconhecido passara agora a ser mais forte e premente do que qualquer outro desejo que algum dia sentira, incluindo o carnal. Viciara-se na deambulação, no frenesim da descoberta, pelo que partiu e regressou dos trajetos mais improváveis inúmeras vezes, para constatar que a pele da mãe ia perdendo o brilho, o gato engordava pelos cantos e o sujeito que ocupava agora o cadeirão do pai era um grunho acéfalo com pinta de garanhão, que arrotava à mesa e não disfarçava o prazer de lhe ver as costas. Às vezes sucediam mesmo episódios surreais, como aquele em que se cansara de ver programas televisivos para sopeiras, nos grotescos serões familiares que a mãe lhe impingia, e espetara uma murraça direta no vidro da televisão, com direito a ko técnico para ambas as partes e uma tentativa frustrada de o levar ao psiquiatra. Ou o outro em que, cansado das banalidades do tipo e dos seus comentários cretinos pelo facto de não comer carne, arregaçara a manga e, pegando na faca que nunca usava, começara a fazer pequenos cortes superficiais no braço, calma e metodicamente. O sangue escorria em gotinhas vermelho vivo e misturava-se com o arroz branco, como pétalas pequeninas a cair sobre a neve. Agarrara então no garfo, mexera o arroz e continuara a comer, impávido e sereno, enquanto o sujeito desorbitava tipo peixe miúdo a olhar para um tubarão. Fora literalmente um golpe de génio pois, desse dia em diante, o homenzito só repuxava os lábios para mostrar os dentes amarelados e irregulares, mantendo as cordas vocais em repouso.
Num dos seus regressos, desta feita da Índia onde permanecera cinco meses, percebeu que o seu próprio espólio potencialmente cinematográfico era já bem superior a quaisquer expectativas que inicialmente tivera. Tinha encontrado o seu rumo, inequivocamente, pelo que decidiu fazer uma viagem distinta das anteriores. Começara, pela primeira vez, uma relação digna desse nome e portanto não iria só, queria fazer um filme diferente. Ultrapassadas as barreiras económicas, graças aos cinéfilos pelintras e a muitas horas de pirataria, seguiu para Amesterdão com a namorada, uma garotinha ingénua que ele transformara em aprendiz de nómada e que partira airosamente, à revelia dos pais, em busca de vivências extravagantes.
A coisa principiara em grande, com concertos à beira rio, jantares aquecidos por velas, divagações em coffee shops e contemplação de quadros de Van Gohg que coloriam o imaginário. Tudo pontuado por noites de imensa ternura, em que ele descobria que os seus dedos eram finos fios de seda que afloravam docemente a pele suave da companheira e o seu corpo uma teia gigante e elástica que a envolvia docemente. Noites em que se fundiam em terna luxúria, numa harmonia tão perfeita que lhes apetecia congelar o tempo ou morrer assim. E em que depois conversavam horas a fio sem se aperceberem que o tempo deslizava, pois sentiam o mesmo prazer em escutar-se e estavam em sintonia. Percebiam-se sem esforço, identificavam-se no essencial, gente feliz unida pela cumplicidade e pelo desejo.
Mas breve o dinheiro acabou e era ainda distante a vontade de regressar a terras lusas. Por escassez de alternativas, foram encalhar num qualquer bar manhoso, ele ao balcão a servir paliativos e ela na cave a chibatar masoquistas, vestida de couro e esborratada como uma manicura dos subúrbios. Mantinha, ainda assim, uma ingenuidade intocável, fruto talvez do seu carácter dócil e da educação que recebera. Encarnava uma personagem perversa e decadente com a mesma naturalidade que venderia postais a turistas, sendo que esta atividade lhe proporcionava uma deliciosa sensação de superioridade. O seu braço frágil zurzia o chicote na carne de todo o tipo de seres, que se rendiam prazenteiramente e a olhavam com veneração e desejo. Vida dupla, atriz em filme real, o sonho de qualquer miúda com miolos de passarinho. Até os pais irromperem abruptamente no cenário e a transportarem para um quarto almofadado, onde lhe vidraram os olhos e assumiram o comando da sua vontade. A repetição do mesmo filme macabro num cenário distinto, protagonizado por outro dos raros seres que conseguira amar e que, de novo, se transformava num espantalho desarticulado perante a sua vontade impotente. E aí ele sentiu que qualquer coisa no seu peito, que anteriormente já estalara, se partia de vez, sendo que agora já não tinha mais forças para subir ao telhado e procurar uma nova saída.
Os animais refugiam-se na toca, os humanos recolhem-se entre quatro paredes e rodeiam-se do que mais gostam, ou do que melhor lhes distrai o espírito das sombras más e da perda gradual, mas consecutiva, que é a vida. O tipo descobriu uma forma de transformar o quarto no seu casulo intransponível, tornou-se praticamente imune ao exterior e passou a sair à rua apenas para o essencial. Como continuava sem trabalho fixo e estava habituado a desenvencilhar-se, descobriu diversas estratégias de sobrevivência algo bizarras e arranjou até um esquema quase infalível de sacar fundos à caixa estúpida da parede, esticando sempre religiosamente o dedo grande à publicidade impingida pelo ecrã. Nisto investia parte do seu tempo e a totalidade dos seus neurónios, apesar do esforço, até à data, se ter revelado infrutífero. No entanto, estava certo que um dia conseguiria apropriar-se de algum capital alheio, pelo que persistia esperançoso, pois não queria depender da caridade familiar e muito menos desistir dos seus projetos.
Após uma releitura da Metamorfose do Kafka, surgiu-lhe uma paixão inusitada por borboletas, seres etéreos que lhe coloriam a solidão e lhe esvoaçavam a mente para outras paragens, fugindo assim à persistência do cenário e ao confinamento do espaço. Povoou o quarto de vasos com flores e pratinhos com frutas de onde elas extraíam alimento, sentindo-se muito apaziguado a escarafunchar a terra e a mimar as plantas viçosas. Quando as bichinhas morriam, espalmava-as amorosamente sobre folhas de papel de seda e cravava-lhes alfinetes de cabeças brilhantes, eternizando a sua beleza fugaz. Entretanto, juntava o vício de devorar filmes ao lado prático de engorda das finanças e vendia mais do que muitas lojas, o que até lhe dava um certo peso na consciência pois defendia os direitos de autor. Mas, sobretudo, concentrava-se no seu grande projeto de vida, engendrando as suas películas mutiladas com as imagens que continham o que vira viver e com as que testemunhavam aquilo que ele próprio vivera. Retalhava-as para as ressuscitar, porque o seu próprio filme estava definitivamente lynchado e socorria-se da pertinaz ilusão que poderia refazê-lo à medida dos seus desejos.
O indivíduo pensou no amigo e no seu convite e sorriu para si próprio. Claro que jamais iria a aniversário algum, mas como agora estranhavam o facto de raramente sair de casa e lhe chateavam a molécula, tinha de agir com astúcia e apresentar desculpas plausíveis. Não queria que viessem de fininho tentar sacar o que lhe ia na cabeça, até porque o mais provável era apanharem um susto diabólico e decidirem pôr-se a milhas. Por muito que o contrariasse, a verdade é que precisava deles, pois convidava-os de vez em quando para irem lá ao quarto ver uns filmes e aproveitava para, subrepticiamente, lhes mostrar um dos seus, camuflado de Lynch ou de Cronenberg ou de Mike Leigh. Os tipos fingiam papar a marosca e dissertavam com sinceridade sobre as imagens, o enredo ou a trilha sonora sacada a putos de bandas de garagem, o que o ajudava no caminho a seguir visto que, se queria a notoriedade póstuma (a dos grandes!), tinha que pensar em todos os pormenores, até no seu público futuro. Desse lá por onde desse, não podia derrapar na mediocridade de descurar qualquer peça daquela engrenagem bem oleada que era o seu sonho. Por sorte, aqueles meus não eram estúpidos de todo e percebiam mesmo de filmes, portanto as suas opiniões eram uma mais-valia.
Acima de tudo, pensou ainda, era já hora de voltar a partir para a derradeira viagem, a apoteótica, a decisiva, pelo que estava fora de questão ir gastar dinheiro em jantares da treta. Desta feita seria a Patagónia e precisava de vender ainda muitos filmes a tipos de olhos estragados antes de zarpar. E, de mais a mais, o amigo não sabia, mas agora só comia aquilo que ele próprio cozinhava. À cautela!

(foto Julien Roumagnac)

segunda-feira, maio 07, 2007

Evasão sensacionista


Algures num tempo sonhado, no ano de tal


Para ti, sem sombras.


Aqui estou eu, completa, apesar da distância. As vivências que não partilho contigo sabem-me menos bem, pois perdem a delícia da cumplicidade. Acho que é ela que me faz amar-te e temer-te, numa dualidade que encerra a completude. Agora, longe desses olhos que me vêem por dentro, sinto-me mais livre, ainda que um pouco só. É bom sentir o prazer da tua ausência! Quer dizer que ela já não me dói...
Vou-te escrever no presente para estarmos mais próximos. Acabo de chegar a Viena. A estação encontra-se apinhada de gente que corre em todas as direcções com um rumo certo, definitivo, o que me traz um ligeiro sabor de desamparo. Olho em volta na esperança de vislumbrar quem me carregue as malas e sinto desgosto ao constatar que ninguém toca violinos à minha chegada. Dirijo-me a uma vendedora de flores e compro um enorme ramo de violetas roxas que aspiro com prazer, talvez até com uma certa violência. Cor e cheiro, presentear os sentidos. Acerca-se um homem de meia-idade, rosto indistinto, mãos calosas e uma respeitável corcunda em vias de formação, e liberta-me do constrangimento da bagagem. Deposito-lhe uma quantia razoável na mão e dou-lhe o endereço do hotel.
Reparo agora na incrível luminosidade do dia e vou ao seu encontro com leveza. Sinto-me diferente e isso agrada-me! Parece que uma espécie de embriaguez lúcida se apossou de mim, apurando-me todos os sentidos e transformando o meu corpo numa esponja gigante. Estou pronta para absorver todas as emoções de uma cidade que pulsa e vive a um ritmo desconhecido e se oferece inteira à minha insaciabilidade de novo. Com a ajuda dela vou renovar-me e alimentar, uma vez mais, o meu vício de metamorfose.
Decido caminhar sem rumo e ir observando as pessoas. Acho-as todas muito engraçadas pois, no fundo, apetece-me que elas o sejam. O sol está forte, sinto-me demasiado quente e decido entrar num café pitoresco, tipo anos 20, para refrescar a garganta. As pás de ventoinhas gigantes agitam o ar e o seu movimento constante e sincopado contrasta com a passividade dos que estão sentados. Um espelho enorme ocupa a parede em frente da qual me sento. Revejo-me nele (por que não nos conseguimos ver a nós mesmos?) e apercebo-me que estou feliz. Simples, saboroso, isto de estar feliz! Lembro-me, não sei porquê, dos dadaístas. Talvez por causa deste espelho, que imagino igual ao do Café Voltaire. Necessito falar com o Tristan Tzara. Acho que neste instante só me apetecia ouvi-lo a ele, mais ninguém. Acendo um cigarro e observo as espirais diluir-se em volteados ondulantes que me acendem de repente o desejo. O empregado aproxima-se e peço-lhe um vodka gelado com uma rodela de limão, antecipando já o prazer que irei experimentar quando o sentir deslizar pela minha garganta sequiosa. A sensação é tão intensa que decido prolongá-la e saio novamente para o exterior.
Vou andando à deriva. Um cego toca harpa numa esquina, uma harpa pequenina de madeira preta e lustrosa. Gosto do ar dele, tão longínquo e envolvido pela suave melodia dos acordes. Páro a seu lado e fecho os olhos para melhor sentir a música. Alheio-me do tempo e do espaço, desfruto a ausência de materialidade e, inadvertidamente, levito. Estou exactamente a pairar por cima da cabeça dele, e só existe a música. As moedas começam então a chover de uma tal forma que o cego pára de tocar e estampa-se-lhe no rosto uma satisfeita incredulidade. Oiço-o pensar que a humanidade se tornou finalmente sensível à beleza do som e à importância da sua pessoa para a harmonia do local. É um pensamento tão deliciosamente pueril que não consigo conter uma gargalhada denunciadora da minha presença ali. Opto por fugir, pois não me apetece que o homem estrague a poesia do momento com alguma frase estupidamente banal. Prefiro pensar que ele é assim sempre, poético, um tanto ingénuo.
Começo a ficar cansada de deambular e encaminho-me para o hotel, embora não imagine onde fica. Encontro-o finalmente quando não consigo sustentar por mais tempo o desejo de tomar um banho refrescante numa banheira de mármore redonda. Dela vejo a cidade que se estende até à linha do infinito, esfumada por uma neblina ténue. Se semicerrar os olhos, posso visualizá-la como uma paisagem de Van Gohg, ondulante, delicadamente etérea.
Salto da banheira e enrolo-me numa enorme toalha felpuda. Vou à varanda sentir a carícia do vento na pele molhada e no cabelo. Nunca consegui resistir ao apelo das mansardas, à sua opulência pequenina, encarrapitadas discretamente no topo dos edifícios num convite ao recolhimento e à intimidade. Sinto-me livre e em paz com o mundo. Adivinho uma estadia superior a qualquer expectativa. Como uvas enormes e sumarentas e penso em ti com uma nostalgia saborosa. Sinto-te aqui, é bom, e nem me pesas porque já fazes parte do passado. Talvez te tenha trazido nalgum canto da mala castanha sem me dar conta...

(foto Andy Bell)

domingo, maio 06, 2007

Bicho homem


Era uma vez uns bichinhos chamados humanos que eram realmente muito esquisitos. Eles viviam em tocas bem grandes que atafulhavam de coisas coloridas, confortáveis e mágicas, coisas que se mexiam sozinhas para fazer o trabalho, que davam luz ou que reproduziam sons e imagens. Porém, tinham que se esfalfar muito para consegui-las, pelo que não lhes sobrava grande tempo para viver serena e instintivamente como os outros animais.
Aliás, eles não eram nada como os outros bichos. Estavam sempre muito lavaditos e não se podiam distinguir pelo cheiro, pois perfumavam o corpo com diversos aromas para se sentirem especiais. Também escondiam o pêlo com panos bonitos e vistosos, caminhavam orgulhosamente na vertical e gostavam muito de se ver ao espelho.
Pena era, contudo, que pudessem
fazer mal a si próprios das mais variadas formas, assim como matar os seus iguais, actos aberrantes, quebras de harmonia. Eles eram tão anti-naturais que até conseguíam contrariar os seus impulsos, prendas sagradas da natureza generosa, para demonstrar o contrário daquilo que sentiam, umas vezes em proveito próprio, outras por cobardia.
Estes bichinhos chamados humanos eram mesmo peculiares! Por exemplo, quando estavam tristes podia escorrer água salgada dos seus olhos, proporcionando-lhes um grande alívio ou trazendo-lhes a solidariedade dos seus semelhantes. Comunicavam também de forma original, produzindo uma gama variada de sons que se articulavam em inúmeras palavras. Com estas transmitiam parte do que lhes fervilhava no íntimo, manipulavam outros bichos em seu proveito ou dissertavam sobre coisas tão complexas como a saudade, a justiça ou o preconceito.
Graças às suas inúmeras capacidades e à sua prodigiosa imaginação, eles viviam mais do que os outros bicharocos e cansavam-se menos. Deslocavam-se muito em caixas com rodas, ou então em salsichas com asas ou lombrigas com janelas, e atingiam velocidades fantásticas! As sensações que as diferentes espécies desfrutavam em separado, umas correndo velozmente e outras rasgando o céu azul, eram por eles usufruídas em simultâneo, o que era realmente bestial!
Resta saber então o que os tornava assim únicos no seio da imensidão de bichos que fervilham neste mundo. Pois o segredo é que, dentro das suas cabecitas, existia uma espécie de tripa enroladinha que lhes dava a inteligência. E algures dentro de si, segundo muitos num órgão obstinado que batia compassadamente durante toda uma vida, havia o amor. De tão peculiar e versátil, o amor não se manifestava sempre da mesma forma, aliás, revestia-se de tantas formas e tons que mais parecia um caleidoscópio de infinitas combinações. E jogava à cabra-cega com o cérebro, tentando fintá-lo quando este se opunha aos seus ímpetos altruístas. Por vezes, desta guerra nascia então o ódio, coisa feia, erva daninha, que minava os humanos por dentro e os levava a serem imensamente cruéis.
De facto, era inútil tentar compreender estes bichos tão bizarros, que davam cabo do planeta azul sem temor e precisavam de divãs com ouvinte, pagos à hora, para se conhecerem a si mesmos. Esta era, aliás, a sua tarefa mais inglória! Volvidos milhares de anos e assombrosos progressos, eles continuavam tão perdidos como nos primórdios da sua existência. Por isso, tentavam realizar-se e distrair-se, criando, construindo, demolindo, procriando, guerreando... Inventavam realidades paralelas em filmes mirabolantes, compunham melodias quase tão perfeitas como a do mar, engendravam meios sofisticados para combater as maleitas, pintavam telas com as cores das searas maduras ou da folhagem no Outono, construíam tocas que quase tocavam o céu, educavam crias que os orgulhavam. Em suma, desmultiplicavam-se! em esforços miraculosos para se suplantarem. Porém, quando a tristeza chegava de mansinho e os cortava por dentro como lâminas finas, viravam-se para Deus, um senhor de grandes barbas que manipulava as existências como outros faziam dançar fantoches, na esperança de que se realizasse o prodígio solicitado. Mesmo não o conhecendo, intuíam que só dele podiam ter herdado a gula do poder e a avidez de conhecimento, sendo que a bondade e o perdão mal tinha penetrado na dura couraça que os revestia.
Apesar de reunirem, afinal, mais condições propícias à felicidade do que qualquer outro ser vivo, o certo é que estes bichos não eram felizes. O egoísmo, a inveja, a ganância e a mediocridade, coisas maléficas que lhes eram intrínsecas, foram-nos conduzindo progressivamente a uma profunda solidão. E ficou então sabido nessa época, e lavrado em editais que se colaram em todas as portas, que a solidão é a pior praga que há! Ela foi-se instalando devagarinho, pé ante pé, e, subtilmente, cresceu, cresceu, até se transformar numa hera gigante e corrosiva que os cobriu por todo e lhes sugou as forças. Foi assim que estes bicharocos, muito burros e casmurros, perceberam, por fim, que era estupidamente tarde. E em vão tentaram acender lareiras no peito que lhes adoçassem o vazio e os consolassem até que a senhora feia da foice os viesse libertar.
Esta é a história abreviada dos bichinhos chamados humanos. História triste, ancestral, incontornável... Talvez um dia eles sejam substituídos por bichos bravos, uns seres impulsivos que dão marradas, mas que são genuínos e quentes e solidários. E então é possível que tudo volte a fazer sentido!

(foto Martin Andreasen)