terça-feira, maio 27, 2008

Fez-se luz!


Vamos dar como ponto assente que me encontro numa fase de perfeita tonteira! Continuo a ter neurónios, é certo, pois todos os dias às oito da manhã, hora imprópria para um bicho noctívago e deambulante estar fora da toca lavadito e apresentável, espremo o meu cérebro, afivelo o meu melhor sorriso e enfrento as feras. Estão ainda adormecidas e derramam-me olhares bovinos em frente às mesmas mesas das mesmas salas por onde passei há bem mais de uma década atrás. Esforço-me então, como é hábito, por acordá-las com uma cronicazita do RAP ou do MEC, uma notícia quente do jornal ou uma qualquer alusão ao Rock in Rio. Ainda assim há uma indolência invulgar que me adoça os movimentos e suaviza o tom de voz, o que as leva a fitar-me com olho matreiro e a incitar-me à dispersão, na tentativa vã de que a cavaqueira se prolongue para que as teorias cheguem mais tarde. Há uns dias e esta parte, admito, estou a acordar com elas e não a acordá-las a elas, variante que muito lhes apraz.
Caramba, a coisa anda mesmo parda! Começo por teimar esquecer que não se pode fumar no café da senhora bósnia, coitadita, que já não sabe que dentes me exibir para amareladamente me recordar que as espirais voluptuosas do meu cigarro não são bem vindas no seu balcão. É ali que trinco matinalmente umas parvoíces para enganar o estômago enquanto tento apagar do meu cérebro a imagem da cama macia e quentinha.
Depois também me ando a esquecer de puxar o travão de mão, o que não é grave porque o terreno é quase plano, só que o local é ventoso e o Verão foge de nós. Então outro dia, com a chuva tocada a vento, o Mustang já estava a querer ir embora sozinho. Eis que de seguida devo entrar a distribuir os bons-dias da praxe, mas qual quê, só tenho olhos para a maquineta que verte capuccinos e para o sofá mais longínquo do cubículo, onde me refugio à socapa dos interlúdios esganiçados da Velha Guarda. Não perco a hora porque tenho a vantagem de andar a toque de campainha, qual cãozinho do Pavlov, mas chamo Otília à Irene e Micas à Antónia e vou tentar abrir a porta da sala ao lado, com a dita a corrigir o nome por que atende e a vociferar que não é ali que devo torturar os meus jovens adultos, como estes agora se autodenominam (habituo-me ao acordo, de fininho!).
Pois é assim que estou por estes tempos no que concerne a arte de veicular saber a troco de uns famigerados trocos, congelados sabe-se lá até quando. Não se pense contudo que perdi o jeito, pois já são bons anos a saber como lidar comigo mesma para dominar o palco que diariamente me espera. É apenas uma fase peculiar e divertida, tipo à Mr. Bean, que ocorre porque um sol quente e luminoso se instalou no meu coração, coisa de que me desabituara há tempo. Em especial desde que a mãe partiu, o pai ficou macambúzio e parte do meu mundo desmoronou sem pré-aviso da noite para o dia por múltiplas e tristes razões.
Desejo que o sol não me queime, antes que me amorne lentamente, para que o sangue volte a circular fluido e me salte do peito a tábua que nele caiu. Tenho é que me lembrar de tudo o que me ando a esquecer no que toca às rotinas banais. E esquecer-me de tudo o que me andava a lembrar no que toca à minha vida. Parece-me bem.

(imagem de John Wilson)

2 comentários:

confra-ria disse...

Há melancolia e luz na tua prosa...depois de ler fiquei como que entre a Lua e o Sol...
Um abraço da outra Margem

Anónimo disse...

Mesmo quando o sol queima, é preferível a todas as outras opções!

Bjs
Jorge