quinta-feira, setembro 06, 2007

A caminho de lugar nenhum


2005-06-24


Resolução do Conselho de Ministros n.º 102/2005


(...)
1- Combate à fraude e evasão fiscais. - A solidariedade entre todos os Portugueses, para colocar o País de novo na senda do crescimento económico e implementar as medidas necessárias para a consolidação das contas públicas, impõe um combate sem tréguas à fuga a um dos deveres básicos de cidadania: o pagamento de impostos.
(...)
d) Congelamento das progressões e suplementos - a imperiosa necessidade de controlar a aumento da despesa pública obriga o Governo a consagrar, a título meramente excepcional e temporário, medidas de congelamento das progressões na carreira e dos suplementos remuneratórios que se manterão nos seus valores actuais. Esta situação excepcional manter-se-á até 31 de Dezembro de 2006, data em que deverá entrar em vigor a revisão do sistema de carreiras e remunerações.

Quem desejar aceder ao documento na íntegra pode usar a hiperligação e constatar que este texto, apesar de tão metafórico e eufemístico, não se insere na categoria de prosa poética.
Algumas ilações a retirar da leitura destas citações:
1ª- Entenda-se por solidariedade ao País (com letra maiúscula como nos velhos tempos, evitando reminiscências da abrilada) ser penalizado por nada dever ao fisco, pois é exactamente o que acontece aos funcionários públicos. Os seus descontos são efectuados ao cêntimo, sem qualquer hipótese de actuação fraudulenta. Entretanto aqueles que de facto fogem aos impostos são beneficiados com aumentos no vencimento e progressões nas carreiras, o que pode ser tudo menos solidário. A palavra solidariedade adquiriu portanto novos significados e múltiplas cambiantes desde a tomada de posse do actual governo, ainda que não tenhamos sido previamente inteirados da respectiva revisão semântica, nem das suas nefastas repercussões. É certo que devíamos ter interiorizado há muito os perigos e as armadilhas das maiorias e ter já aprendido a evitá-las, o que é inviável para portugueses que não atingem sequer as graves consequências que estas, e outras tantas medidas compiladas neste e noutros documentos análogos, acarretam para os visados e para o país.
Uma só questão: poderá haver crescimento económico sem poder de compra e com um tal recurso ao crédito e ao endividamento?
2ª- Há quem perca qualidade de vida e aperte um cinto já sem buracos, enquanto inúmeros não passam facturas, alguns criam sacos azuis e pavoneiam-se com sacos Louis Vuitton, outros desfilam em automóveis topo de gama a expensas do erário público e por aí fora, todo esse rol interminável que já cansámos pois nada se altera. É então um dever básico de cidadania um conjunto de indivíduos contribuir solitariamente para colmatar os buracos orçamentais criados por terceiros? Bom, talvez até constitua um óptimo argumento a usar perante um povo que não domina, nem em teoria nem na prática, este conceito arrevesado que a Europa nos trouxe por inerência.
Os romanos convenceram o povo da culpa dos cristãos e serviram-nos na arena para diversão das massas, mas todos sabemos a quem pertenciam realmente os crimes. Povo bem manipulado é povo facilmente governado, em especial quando até gosta de telenovelas e noticiários com Maddies (com todo o respeito pela criança, como é óbvio).
3ª- As palavras excepcional e temporário alteraram-se em termos semânticos, quiçá até orgânicos, visto que se tornaram elásticas! Já lá vão mais de dois anos e, ao que consta, a situação vai permanecer imutável. Note-se que o prazo cessava em 2006. Estamos em 2007 e já constou que se prolongará ao longo de 2008. Visto que não nos podemos apoiar na credibilidade de quaisquer palavras ou promessas, resta-nos a esperança de que a recente etimologia destes vocábulos não seja ad eternum, caso contrário o genuflexódromo oficial (como diz o meu amigo Monsieur de Guillotin) contará com tantos peregrinos que terá de sofrer novo alargamento!
No entanto, e segundo sondagens que podem ser objecto de manipulações, os portugueses estão satisfeitos com o governo. A inveja, sinónimo de mediocridade, sempre foi uma das nossas características mais notórias. Inveja de quê? De uma ideia quimérica
de privilégio decorrente da velha máxima de que os funcionários públicos são uns felizardos porque não fazem nada? E que mesmo ganhando uns trocos inferiores aos dos seus colegas do privado são uns sortudos? Ainda que assim fosse, é triste constatar como os lusos patrícios nivelam sempre por baixo! O primeiro e mais acalentado sonho do português é não fazer nada. E ao invés de almejar o progresso comum, contenta-se, parece que até se regozija mesmo, com a desgraça individual.
Deixemos-nos de lirismos: nem uma aldeia global conseguimos ser, quanto mais uma nação comunitária!
4ª- Tememos que se ande a ponderar a implementação de novas medidas básicas de cidadania, como a retirada do rendimento social de inserção, do subsídio de desemprego, do abono de família, das comparticipações médicas, et caetera. São quantias magrinhas, mas grão a grão enche a galinha o papo. E venham mais multas!
5ª- Queremos contribuir solidariamente para o fim da crise (a de 1383/85 ou é uma mais antiga? Já não sabemos bem, contas até nem são o nosso forte) e aliar-nos ao governo nesta luta. Já que se tornou usual no nosso país o desempenho de funções mal remuneradas por cidadãos do leste da Europa, sugere-se então que os milhares de professores que se encontram sem trabalho sejam chamados a intervir num justo intercâmbio laboral. Chegou a hora de dar um cunho ainda mais abrangente ao conceito de solidariedade e presentear os países de leste com a nossa contribuição para o seu rápido florescimento, para que em breve possam estar a ultrapassar-nos como é hábito e normal. Eis uma excelente iniciativa para acabar com as chatices da classe docente e poupar em subsídios de desemprego que só contribuem para aumentar o buraco orçamental. Até porque, e em última análise, os professores são duplamente culpados: são uns funcionários públicos que não fazem nada e uns cretinos que seguiram a via ensino ao invés da via profissionalizante! Felizmente esta irregularidade já foi detectada pela argúcia incontornável da senhora ministra da educação, a qual encetou uma nobre campanha de desencorajamento aos jovens universitários que almejem cometer o mesmo delito. É óbvio que lhes resta sempre a opção de serem filósofos trolhas, historiadores merceeiros ou linguistas serventes de pedreiro, mas o mais sensato é optarem mesmo por alguma estratégia mais elaborada, tipo voltar ao primeiro ano, pagar novas propinas e constituir família em 2020. Já os mais novos devem, por sua vez, enveredar pelo técnico-profissional de modo a assegurarem os empregos dos professores do quadro, senão de todos, pelo menos dos que já não têm idade para se dedicar à pesca da sardinha. E se pensarem em desistir para trabalhar para o sustento da família, é-lhes interditado o acesso às discotecas e aos estádios de futebol, à boa moda prepotente e directiva agora implantada na nação, vulgo "Ou tás quetinho ou levas no focinho!"
"Os ricos que paguem a crise" é um slogan perfeitamente démodé! Agora o que rende é massacrar mesmo a função pública, na esperança de virmos a assistir, num futuro próximo e glorioso, à derradeira etapa desta magnífica cruzada: a privatização da classe política ou, em alternativa, a sua reinserção profissional na reforma agrária.

(foto Martin Andreasen)

3 comentários:

Anónimo disse...

Às vezes dá-nos ganas de escrever assim, não é, amiga? A mim acontece-me por esta época do ano, principalmente. Deve ser do regresso dos políticos à actividade (muito a propósito, tem coincidido com uma onda de assaltos...).

bjs

paulo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
paulo disse...

Muito bem, Kika. Inspirada! A parte dos funcionários públicos está um mimo. Acho que chego à mesma conclusão: se estou desempregado a culpa é minha: quem me mandou tirar o curso de via ensino na insuspeita FLUL? Devia ser mais solidário e nem pedir o subsídio, mas quero é que a mEnistra e sus muchachos se f***. Espero que venha o dia em que ninguém queira ser professor e depois tenha de contratar seja lá quem for (por exemplo, no meu 9º ano a minha professora de inglês tinha o 12º e foi dar aulas porque não tinha entrado na faculdade). Faltará assim tanto tempo? Só estão a destruir o país, mais nada.