segunda-feira, maio 07, 2007

Evasão sensacionista


Algures num tempo sonhado, no ano de tal


Para ti, sem sombras.


Aqui estou eu, completa, apesar da distância. As vivências que não partilho contigo sabem-me menos bem, pois perdem a delícia da cumplicidade. Acho que é ela que me faz amar-te e temer-te, numa dualidade que encerra a completude. Agora, longe desses olhos que me vêem por dentro, sinto-me mais livre, ainda que um pouco só. É bom sentir o prazer da tua ausência! Quer dizer que ela já não me dói...
Vou-te escrever no presente para estarmos mais próximos. Acabo de chegar a Viena. A estação encontra-se apinhada de gente que corre em todas as direcções com um rumo certo, definitivo, o que me traz um ligeiro sabor de desamparo. Olho em volta na esperança de vislumbrar quem me carregue as malas e sinto desgosto ao constatar que ninguém toca violinos à minha chegada. Dirijo-me a uma vendedora de flores e compro um enorme ramo de violetas roxas que aspiro com prazer, talvez até com uma certa violência. Cor e cheiro, presentear os sentidos. Acerca-se um homem de meia-idade, rosto indistinto, mãos calosas e uma respeitável corcunda em vias de formação, e liberta-me do constrangimento da bagagem. Deposito-lhe uma quantia razoável na mão e dou-lhe o endereço do hotel.
Reparo agora na incrível luminosidade do dia e vou ao seu encontro com leveza. Sinto-me diferente e isso agrada-me! Parece que uma espécie de embriaguez lúcida se apossou de mim, apurando-me todos os sentidos e transformando o meu corpo numa esponja gigante. Estou pronta para absorver todas as emoções de uma cidade que pulsa e vive a um ritmo desconhecido e se oferece inteira à minha insaciabilidade de novo. Com a ajuda dela vou renovar-me e alimentar, uma vez mais, o meu vício de metamorfose.
Decido caminhar sem rumo e ir observando as pessoas. Acho-as todas muito engraçadas pois, no fundo, apetece-me que elas o sejam. O sol está forte, sinto-me demasiado quente e decido entrar num café pitoresco, tipo anos 20, para refrescar a garganta. As pás de ventoinhas gigantes agitam o ar e o seu movimento constante e sincopado contrasta com a passividade dos que estão sentados. Um espelho enorme ocupa a parede em frente da qual me sento. Revejo-me nele (por que não nos conseguimos ver a nós mesmos?) e apercebo-me que estou feliz. Simples, saboroso, isto de estar feliz! Lembro-me, não sei porquê, dos dadaístas. Talvez por causa deste espelho, que imagino igual ao do Café Voltaire. Necessito falar com o Tristan Tzara. Acho que neste instante só me apetecia ouvi-lo a ele, mais ninguém. Acendo um cigarro e observo as espirais diluir-se em volteados ondulantes que me acendem de repente o desejo. O empregado aproxima-se e peço-lhe um vodka gelado com uma rodela de limão, antecipando já o prazer que irei experimentar quando o sentir deslizar pela minha garganta sequiosa. A sensação é tão intensa que decido prolongá-la e saio novamente para o exterior.
Vou andando à deriva. Um cego toca harpa numa esquina, uma harpa pequenina de madeira preta e lustrosa. Gosto do ar dele, tão longínquo e envolvido pela suave melodia dos acordes. Páro a seu lado e fecho os olhos para melhor sentir a música. Alheio-me do tempo e do espaço, desfruto a ausência de materialidade e, inadvertidamente, levito. Estou exactamente a pairar por cima da cabeça dele, e só existe a música. As moedas começam então a chover de uma tal forma que o cego pára de tocar e estampa-se-lhe no rosto uma satisfeita incredulidade. Oiço-o pensar que a humanidade se tornou finalmente sensível à beleza do som e à importância da sua pessoa para a harmonia do local. É um pensamento tão deliciosamente pueril que não consigo conter uma gargalhada denunciadora da minha presença ali. Opto por fugir, pois não me apetece que o homem estrague a poesia do momento com alguma frase estupidamente banal. Prefiro pensar que ele é assim sempre, poético, um tanto ingénuo.
Começo a ficar cansada de deambular e encaminho-me para o hotel, embora não imagine onde fica. Encontro-o finalmente quando não consigo sustentar por mais tempo o desejo de tomar um banho refrescante numa banheira de mármore redonda. Dela vejo a cidade que se estende até à linha do infinito, esfumada por uma neblina ténue. Se semicerrar os olhos, posso visualizá-la como uma paisagem de Van Gohg, ondulante, delicadamente etérea.
Salto da banheira e enrolo-me numa enorme toalha felpuda. Vou à varanda sentir a carícia do vento na pele molhada e no cabelo. Nunca consegui resistir ao apelo das mansardas, à sua opulência pequenina, encarrapitadas discretamente no topo dos edifícios num convite ao recolhimento e à intimidade. Sinto-me livre e em paz com o mundo. Adivinho uma estadia superior a qualquer expectativa. Como uvas enormes e sumarentas e penso em ti com uma nostalgia saborosa. Sinto-te aqui, é bom, e nem me pesas porque já fazes parte do passado. Talvez te tenha trazido nalgum canto da mala castanha sem me dar conta...

(foto Andy Bell)

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