Divagações, interacções, experiências... Tubo de ensaio e trampolim. Acima de tudo, partilha de quem vive intensamente porque não se contenta com menos! Bicho bravo!
domingo, maio 06, 2007
Bicho homem
Era uma vez uns bichinhos chamados humanos que eram realmente muito esquisitos. Eles viviam em tocas bem grandes que atafulhavam de coisas coloridas, confortáveis e mágicas, coisas que se mexiam sozinhas para fazer o trabalho, que davam luz ou que reproduziam sons e imagens. Porém, tinham que se esfalfar muito para consegui-las, pelo que não lhes sobrava grande tempo para viver serena e instintivamente como os outros animais.
Aliás, eles não eram nada como os outros bichos. Estavam sempre muito lavaditos e não se podiam distinguir pelo cheiro, pois perfumavam o corpo com diversos aromas para se sentirem especiais. Também escondiam o pêlo com panos bonitos e vistosos, caminhavam orgulhosamente na vertical e gostavam muito de se ver ao espelho.
Pena era, contudo, que pudessem fazer mal a si próprios das mais variadas formas, assim como matar os seus iguais, actos aberrantes, quebras de harmonia. Eles eram tão anti-naturais que até conseguíam contrariar os seus impulsos, prendas sagradas da natureza generosa, para demonstrar o contrário daquilo que sentiam, umas vezes em proveito próprio, outras por cobardia.
Estes bichinhos chamados humanos eram mesmo peculiares! Por exemplo, quando estavam tristes podia escorrer água salgada dos seus olhos, proporcionando-lhes um grande alívio ou trazendo-lhes a solidariedade dos seus semelhantes. Comunicavam também de forma original, produzindo uma gama variada de sons que se articulavam em inúmeras palavras. Com estas transmitiam parte do que lhes fervilhava no íntimo, manipulavam outros bichos em seu proveito ou dissertavam sobre coisas tão complexas como a saudade, a justiça ou o preconceito.
Graças às suas inúmeras capacidades e à sua prodigiosa imaginação, eles viviam mais do que os outros bicharocos e cansavam-se menos. Deslocavam-se muito em caixas com rodas, ou então em salsichas com asas ou lombrigas com janelas, e atingiam velocidades fantásticas! As sensações que as diferentes espécies desfrutavam em separado, umas correndo velozmente e outras rasgando o céu azul, eram por eles usufruídas em simultâneo, o que era realmente bestial!
Resta saber então o que os tornava assim únicos no seio da imensidão de bichos que fervilham neste mundo. Pois o segredo é que, dentro das suas cabecitas, existia uma espécie de tripa enroladinha que lhes dava a inteligência. E algures dentro de si, segundo muitos num órgão obstinado que batia compassadamente durante toda uma vida, havia o amor. De tão peculiar e versátil, o amor não se manifestava sempre da mesma forma, aliás, revestia-se de tantas formas e tons que mais parecia um caleidoscópio de infinitas combinações. E jogava à cabra-cega com o cérebro, tentando fintá-lo quando este se opunha aos seus ímpetos altruístas. Por vezes, desta guerra nascia então o ódio, coisa feia, erva daninha, que minava os humanos por dentro e os levava a serem imensamente cruéis.
De facto, era inútil tentar compreender estes bichos tão bizarros, que davam cabo do planeta azul sem temor e precisavam de divãs com ouvinte, pagos à hora, para se conhecerem a si mesmos. Esta era, aliás, a sua tarefa mais inglória! Volvidos milhares de anos e assombrosos progressos, eles continuavam tão perdidos como nos primórdios da sua existência. Por isso, tentavam realizar-se e distrair-se, criando, construindo, demolindo, procriando, guerreando... Inventavam realidades paralelas em filmes mirabolantes, compunham melodias quase tão perfeitas como a do mar, engendravam meios sofisticados para combater as maleitas, pintavam telas com as cores das searas maduras ou da folhagem no Outono, construíam tocas que quase tocavam o céu, educavam crias que os orgulhavam. Em suma, desmultiplicavam-se! em esforços miraculosos para se suplantarem. Porém, quando a tristeza chegava de mansinho e os cortava por dentro como lâminas finas, viravam-se para Deus, um senhor de grandes barbas que manipulava as existências como outros faziam dançar fantoches, na esperança de que se realizasse o prodígio solicitado. Mesmo não o conhecendo, intuíam que só dele podiam ter herdado a gula do poder e a avidez de conhecimento, sendo que a bondade e o perdão mal tinha penetrado na dura couraça que os revestia.
Apesar de reunirem, afinal, mais condições propícias à felicidade do que qualquer outro ser vivo, o certo é que estes bichos não eram felizes. O egoísmo, a inveja, a ganância e a mediocridade, coisas maléficas que lhes eram intrínsecas, foram-nos conduzindo progressivamente a uma profunda solidão. E ficou então sabido nessa época, e lavrado em editais que se colaram em todas as portas, que a solidão é a pior praga que há! Ela foi-se instalando devagarinho, pé ante pé, e, subtilmente, cresceu, cresceu, até se transformar numa hera gigante e corrosiva que os cobriu por todo e lhes sugou as forças. Foi assim que estes bicharocos, muito burros e casmurros, perceberam, por fim, que era estupidamente tarde. E em vão tentaram acender lareiras no peito que lhes adoçassem o vazio e os consolassem até que a senhora feia da foice os viesse libertar.
Esta é a história abreviada dos bichinhos chamados humanos. História triste, ancestral, incontornável... Talvez um dia eles sejam substituídos por bichos bravos, uns seres impulsivos que dão marradas, mas que são genuínos e quentes e solidários. E então é possível que tudo volte a fazer sentido!
Sou realmente um bicho bravo, mas que sempre se intimidou no que toca à escrita...
Decidi por fim arriscar a partilha, pois esta é que nos dá gozo e que alimenta a nossa vontade!
Solitário é um diminutivo de selvagem aceite pela civilização. Victor Hugo
A saudade é um pouco como a fome, só passa quando se come a presença. Clarice Lispector
O tempo é um grande mestre; tem porém o defeito de matar os seus discípulos. Berlioz
Se o amor é cego, o que é preciso é apalpar!
Se a mulher fosse boa, Deus tinha uma. Se fosse de confiança, o Diabo não tinha cornos.
Pior do que uma pedra no sapato, só um grão de areia no preservativo.
E quando te sentires inútil ou em depressão lembra-te disto: já houve um dia em que foste o espermatozóide mais rápido do grupo!
É melhor abrir um e-mail com vírus do que uma carta com antrax.
As hierarquias são como as prateleiras: quanto mais altas mais inúteis!
Amigos vêm e vão. Inimigos acumulam.
Todos os cogumelos são comestíveis. Alguns só uma vez...
Experiência é algo que nos permite reconhecer um erro sempre que o cometemos outra vez.
Déjà múuuuuu... Ia jurar que aquela vaca é a mesma pela qual passámos há dois quilómetros atrás!
Se não consegues convencê-los, confunde-os. A mãe é o único Deus / Que não tem descrentes na terra. (epígrafe de autor anónimo do poema Amor de Mãe de Antero de Quental)
Algumas pessoas sentam-se para pensar. Outras apenas se sentam.
O erro é uma forma de pesquisa interior.
O homem é o menos desenvolvido de todos os primatas. Só se preocupa com a sua própria banana!
Todas as pessoas têm memória fotográfica. Algumas não têm é rolo.
A galinha é o meio pelo qual o ovo produz mais ovos.
Tudo o que não é paixão tem um fundo de aborrecimento. Montherlant
O verdadeiro amor é como a aparição dos espíritos: toda a gente fala dele mas poucos o viram. La Rochefoucauld
Apaixonar-se é criar uma religião que tem um deus falível. Jorge Luís Borges
A paixão aumenta em função dos obstáculos que se lhe opõe. William Shakespeare
Investe-se maior paixão para obter o que se não tem, do que para conservar o que já se tem. Stendhal
Um homem não pode viver sem lume, e não é possível fazer-se lume sem queimar alguma coisa. René Daumal
Al Berto - "Horto de Incêndio" - "resposta a emile"
(foto Kenny Weng)
a guerra daqui não mata - mas abre fissuras nos nervos - é o que te posso dizer deste país que escolhi para definhar (...) no fim do corpo em que me escondo espalhou-se a treva onde guardo a corola azulínea da tua ausência
e o marulho nítido de um mar que canta e um calor sísmico nos lábios que beijaste (...) preparo-me para entreabrir os olhos e deixar escorrer a convulsão oleosa das lágrimas e das coisas tristes
Al Berto, "Três Cartas da Memória das Índias"
Vou partir como se fosses tu que me abandonasses.
(foto Jenny Tapanilla)
tingir a ponta dos dedos e do sexo na tinta permanente dos corpos...
Al Berto
António Franco Alexandre, "Duende"
Fosses tu deus, seria eu santo alimentado a areia e gafanhotos, sem cessar meditando o único nome que o horizonte deserto não contém. Sonho que acordo dentro do meu sonho para o saber mais certo e mais real; como o místico leio nas entranhas da ausência a tua sombra desenhada. E no entanto és gente, sangue e terra, corpo vulgar crescendo para a morte; incerto no que fazes, no que sentes, e cioso do tempo que me dás. Porque sei que que me esqueces é que lembro cada instante o que perco e não vem mais.
Mário de Sá-Carneiro, "Dispersão" - "Quase"
(foto Andy Bell)
Um pouco mais de sol - eu era brasa. Um pouco mais de azul - eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém...
Matsuo Bashô, "O Gosto Solitário do Orvalho"
(quadro de Don Li-Leger)
Depressa se vai a Primavera. Choram os pássaros e há lágrimas nos olhos dos peixes.
ANIMAÇÃO
(foto Julien Roumagnac)
The dead - Billy Collins Animated Poetry
Miracle
SOM
(foto Sam Javanrouh)
Dido - My Lover's Gone
Jolie Holland - Old Fashioned Morphine
Leonard Cohen - I'm your man
Massive Attack - Karmacoma
Nick Cave - Red Right Hand
Nicolas Jaar - Mi Mujer
Nina Simone - I Want a Little Sugar in My Bowl
Pet Shop Boys - Go West
Pet Shop Boys - Suburbia
Placebo - My Sweet Prince
Placebo - This picture
Supertramp - It's Raining Again
The Cure - Close to Me
The White Stripes - Jolene
Jorge Palma - Valsa de um homem carente
Repórter Estrábico - Biltre! (mais contemporâneo é impossível!)
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