Ora principiou este bizarro fenómeno, se bem nos recordamos, pela clausura de um bando de toscos num barracão comunal minado de câmaras, onde inventavam tretas impensáveis para se entreter enquanto chiavam pela ordem de soltura. Mimoseavam as audiências com desvaires de polichinelo ou de estivador, abençoados entretanto pelas lágrimas da casamenteira apresentadora, e deliciavam o povo quando sucumbiam aos encantos alheios ou próprios debaixo das mantas.
A coisa foi avançando, que a televisão está mais do que nunca ao serviço da cultura e da intelectualização das massas, e vieram depois os pseudo-vips em versão rural ou em paródias circenses, as ditas belas e os pretensos iluminados a usufruir já de instalações mais condignas e outras quantas pérolas similares revistas e incrementadas. Hoje, e assim o exige a actual guerra de audiências, temos os noivos de Portugal e os aspirantes a vedetas do nacional cançonetismo em dose dupla. Três canais em plena sintonia! É lindo!
Como qualquer fenómeno sociológico, os reality shows merecem então que nos detenhamos a apreciá-los nas suas múltiplas facetas. Comecemos pelo público, esses vampiros que se alimentam da vida alheia e que querem figurar por escassos segundos que seja na caixinha mágica do vizinho, aquele sacana emproado que, esperam, se roerá de inveja. Quem poderá algum dia olvidar, por exemplo, os cromos anónimos com que o Big Brother nos presenteou à entrada do estúdio dos directos e cujas performances rivalizavam com as dos próprios concorrentes? Este foi o primeiro contributo de vulto para o espólio luso de improváveis personagens-tipo à portuguesa, ultrapassadas tão somente pelo nosso Emplastro, na versão popular, ou pelo Castelo Branco, na versão pretenso vip!
Não esqueçamos entretanto as famílias, aquelas pessoas solidárias que se despem por amor às crias, de forma desprendida e aceitando o pesado fardo da passageira notoriedade de forma estóica. Voltando ao Big Brother, pois foi de facto paradigmático, lembremos os progenitores cujos confrontos mútuos e respectivos impropérios nos permitiam melhor compreender a génese dos carácteres dos rebentos. Em dias de menos sorte, em que não havia rixa ou palavrão, era a devassa que atingia o rubro: a cor do primeiro cocó dos meninos, a primeira mecha de cabelinho ostentada no cordão de ouro ao pescoço, o primeiro castigo por lhes terem fanado a guita do porta-moedas ou a primeira vez que chegaram a roupa ao pêlo à namorada. Entrava de seguida a comunicação social na paródia, como é hábito e normal, e tudo era dissecado e desmultiplicado em revistas foleiras que acorriam sequiosas de mais caca para lançar no ventilador, entrevistando para o efeito todo o bicho careta que conhecera as ditas criaturas nesta ou em anteriores encarnações. Assim se deliciam as sopeiras ávidas dos podres alheios, quiçá para melhor lhes cheirarem os seus, enquanto todos os envolvidos rejubilam acreditando-se genuínas vedetas. E assim se produziram surreais fenómenos televisivos extra-concurso, como a abertura do noticiário nacional com o pontapé do Marco na Coisinha ou o charro fumado pelo Garnisé. Surge então mais uma almejada mudança, na esteira das medidas progressistas, desta feita na história das notícias televisivas: a sua credibilidade, depois destes desvaires sem precedentes, nunca mais foi a mesma!
Eis senão que hoje, tantos anos volvidos, a história se vai repetindo indefinidamente sem fim à vista. Vivemos de telenovelas ficcionais e reais. Algumas questões imperam: o que move as pessoas a uma exposição deste calibre? Que prazer experimentam em revelar ao mundo as suas remelas, os seus escarros matinais, o seu furúnculo na virilha ou as suas digestões ruidosas? Que estranho desejo as leva a contar a história da sua vida aos quadradinhos, as suas fraquezas, os seus podres? Que alegria lhes dá entabularem monólogos absurdos com câmaras de televisão e chorarem baba e ranho com saudades de familiares dos quais se separam voluntariamente durante uns dias? Que peculiar acesso de solidariedade as leva a tornarem-se amigas do peito de indivíduos que conhecem há meia dúzia de dias, quando sistematicamente ignoram familiares, colegas de trabalho ou vizinhos de anos? Finalmente, o que interessa tudo isto aos milhões de pessoas que assistem enlevada e fielmente a estes programas em detrimento daqueles que focam as questões políticas, sociais e económicas que presidem os seus destinos ou daqueles que, de algum modo, as enriquecem e aumentam a sua cultura geral? É esta a evolução das mentalidades no século XXI?
Parafraseando os gauleses, é caso para dizer "Estes romanos estão loucos!" . Depois de desnudar gradualmente o corpo, o que foi, a todos os níveis, uma excelente ideia, o ser humano entrega-se agora à nudez da alma à escala mundial, o que me parece muito mais vergonhoso e pornográfico. Basta ver o programa da Oprah ou do Dr. Phil e arrepelar os cabelos, corando pela miséria da exposição alheia. Será que agora toda a gente se convenceu que é de Hollywood? A humanidade precisa de uma terapia colectiva!
Haverá vida em Marte?!
(foto Alessandro Pautasso)
2 comentários:
Amiga: vida em Marte? Claro que sim. Ainda duvidavas? Beijinhos e abraços
Bom texto, Kika. Vida em Marte? Eu quero é saber se ainda lá há lugar p'ra mim e p'ró "meu" Paulinho...
Enviar um comentário