
Algures num tempo sonhado, no ano de tal
Para ti, sem sombras.
Aqui estou eu, completa, apesar da distância. As vivências que não partilho contigo sabem-me menos bem, pois perdem a delícia da cumplicidade. Acho que é ela que me faz amar-te e temer-te, numa dualidade que encerra a completude. Agora, longe desses olhos que me vêem por dentro, sinto-me mais livre, ainda que um pouco só. É bom sentir o prazer da tua ausência! Quer dizer que ela já não me dói...
Vou-te escrever no presente para estarmos mais próximos. Acabo de chegar a Viena. A estação encontra-se apinhada de gente que corre em todas as direcções com um rumo certo, definitivo, o que me traz um ligeiro sabor de desamparo. Olho em volta na esperança de vislumbrar quem me carregue as malas e sinto desgosto ao constatar que ninguém toca violinos à minha chegada. Dirijo-me a uma vendedora de flores e compro um enorme ramo de violetas roxas que aspiro com prazer, talvez até com uma certa violência. Cor e cheiro, presentear os sentidos. Acerca-se um homem de meia-idade, rosto indistinto, mãos calosas e uma respeitável corcunda em vias de formação, e liberta-me do constrangimento da bagagem. Deposito-lhe uma quantia razoável na mão e dou-lhe o endereço do hotel.
Reparo agora na incrível luminosidade do dia e vou ao seu encontro com leveza. Sinto-me diferente e isso agrada-me! Parece que uma espécie de embriaguez lúcida se apossou de mim, apurando-me todos os sentidos e transformando o meu corpo numa esponja gigante. Estou pronta para absorver todas as emoções de uma cidade que pulsa e vive a um ritmo desconhecido e se oferece inteira à minha insaciabilidade de novo. Com a ajuda dela vou renovar-me e alimentar, uma vez mais, o meu vício de metamorfose.
Decido caminhar sem rumo e ir observando as pessoas. Acho-as todas muito engraçadas pois, no fundo, apetece-me que elas o sejam. O sol está forte, sinto-me demasiado quente e decido entrar num café pitoresco, tipo anos 20, para refrescar a garganta. As pás de ventoinhas gigantes agitam o ar e o seu movimento constante e sincopado contrasta com a passividade dos que estão sentados. Um espelho enorme ocupa a parede em frente da qual me sento. Revejo-me nele (por que não nos conseguimos ver a nós mesmos?) e apercebo-me que estou feliz. Simples, saboroso, isto de estar feliz! Lembro-me, não sei porquê, dos dadaístas. Talvez por causa deste espelho, que imagino igual ao do Café Voltaire. Necessito falar com o Tristan Tzara. Acho que neste instante só me apetecia ouvi-lo a ele, mais ninguém. Acendo um cigarro e observo as espirais diluir-se em volteados ondulantes que me acendem de repente o desejo. O empregado aproxima-se e peço-lhe um vodka gelado com uma rodela de limão, antecipando já o prazer que irei experimentar quando o sentir deslizar pela minha garganta sequiosa. A sensação é tão intensa que decido prolongá-la e saio novamente para o exterior.
Vou andando à deriva. Um cego toca harpa numa esquina, uma harpa pequenina de madeira preta e lustrosa. Gosto do ar dele, tão longínquo e envolvido pela suave melodia dos acordes. Páro a seu lado e fecho os olhos para melhor sentir a música. Alheio-me do tempo e do espaço, desfruto a ausência de materialidade e, inadvertidamente, levito. Estou exactamente a pairar por cima da cabeça dele, e só existe a música. As moedas começam então a chover de uma tal forma que o cego pára de tocar e estampa-se-lhe no rosto uma satisfeita incredulidade. Oiço-o pensar que a humanidade se tornou finalmente sensível à beleza do som e à importância da sua pessoa para a harmonia do local. É um pensamento tão deliciosamente pueril que não consigo conter uma gargalhada denunciadora da minha presença ali. Opto por fugir, pois não me apetece que o homem estrague a poesia do momento com alguma frase estupidamente banal. Prefiro pensar que ele é assim sempre, poético, um tanto ingénuo.
Começo a ficar cansada de deambular e encaminho-me para o hotel, embora não imagine onde fica. Encontro-o finalmente quando não consigo sustentar por mais tempo o desejo de tomar um banho refrescante numa banheira de mármore redonda. Dela vejo a cidade que se estende até à linha do infinito, esfumada por uma neblina ténue. Se semicerrar os olhos, posso visualizá-la como uma paisagem de Van Gohg, ondulante, delicadamente etérea.
Salto da banheira e enrolo-me numa enorme toalha felpuda. Vou à varanda sentir a carícia do vento na pele molhada e no cabelo. Nunca consegui resistir ao apelo das mansardas, à sua opulência pequenina, encarrapitadas discretamente no topo dos edifícios num convite ao recolhimento e à intimidade. Sinto-me livre e em paz com o mundo. Adivinho uma estadia superior a qualquer expectativa. Como uvas enormes e sumarentas e penso em ti com uma nostalgia saborosa. Sinto-te aqui, é bom, e nem me pesas porque já fazes parte do passado. Talvez te tenha trazido nalgum canto da mala castanha sem me dar conta...
(foto Andy Bell)
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