quinta-feira, maio 29, 2008

terça-feira, maio 27, 2008

Fez-se luz!


Vamos dar como ponto assente que me encontro numa fase de perfeita tonteira! Continuo a ter neurónios, é certo, pois todos os dias às oito da manhã, hora imprópria para um bicho noctívago e deambulante estar fora da toca lavadito e apresentável, espremo o meu cérebro, afivelo o meu melhor sorriso e enfrento as feras. Estão ainda adormecidas e derramam-me olhares bovinos em frente às mesmas mesas das mesmas salas por onde passei há bem mais de uma década atrás. Esforço-me então, como é hábito, por acordá-las com uma cronicazita do RAP ou do MEC, uma notícia quente do jornal ou uma qualquer alusão ao Rock in Rio. Ainda assim há uma indolência invulgar que me adoça os movimentos e suaviza o tom de voz, o que as leva a fitar-me com olho matreiro e a incitar-me à dispersão, na tentativa vã de que a cavaqueira se prolongue para que as teorias cheguem mais tarde. Há uns dias e esta parte, admito, estou a acordar com elas e não a acordá-las a elas, variante que muito lhes apraz.
Caramba, a coisa anda mesmo parda! Começo por teimar esquecer que não se pode fumar no café da senhora bósnia, coitadita, que já não sabe que dentes me exibir para amareladamente me recordar que as espirais voluptuosas do meu cigarro não são bem vindas no seu balcão. É ali que trinco matinalmente umas parvoíces para enganar o estômago enquanto tento apagar do meu cérebro a imagem da cama macia e quentinha.
Depois também me ando a esquecer de puxar o travão de mão, o que não é grave porque o terreno é quase plano, só que o local é ventoso e o Verão foge de nós. Então outro dia, com a chuva tocada a vento, o Mustang já estava a querer ir embora sozinho. Eis que de seguida devo entrar a distribuir os bons-dias da praxe, mas qual quê, só tenho olhos para a maquineta que verte capuccinos e para o sofá mais longínquo do cubículo, onde me refugio à socapa dos interlúdios esganiçados da Velha Guarda. Não perco a hora porque tenho a vantagem de andar a toque de campainha, qual cãozinho do Pavlov, mas chamo Otília à Irene e Micas à Antónia e vou tentar abrir a porta da sala ao lado, com a dita a corrigir o nome por que atende e a vociferar que não é ali que devo torturar os meus jovens adultos, como estes agora se autodenominam (habituo-me ao acordo, de fininho!).
Pois é assim que estou por estes tempos no que concerne a arte de veicular saber a troco de uns famigerados trocos, congelados sabe-se lá até quando. Não se pense contudo que perdi o jeito, pois já são bons anos a saber como lidar comigo mesma para dominar o palco que diariamente me espera. É apenas uma fase peculiar e divertida, tipo à Mr. Bean, que ocorre porque um sol quente e luminoso se instalou no meu coração, coisa de que me desabituara há tempo. Em especial desde que a mãe partiu, o pai ficou macambúzio e parte do meu mundo desmoronou sem pré-aviso da noite para o dia por múltiplas e tristes razões.
Desejo que o sol não me queime, antes que me amorne lentamente, para que o sangue volte a circular fluido e me salte do peito a tábua que nele caiu. Tenho é que me lembrar de tudo o que me ando a esquecer no que toca às rotinas banais. E esquecer-me de tudo o que me andava a lembrar no que toca à minha vida. Parece-me bem.

(imagem de John Wilson)

sexta-feira, maio 23, 2008


Usurpei estas imagens ao Manu ( http://confra-rias.blogspot.com/) pois acho que é fundamental que estejamos unidos neste combate ao absurdo aumento dos combustíveis. Tenho recebido muitos e-mails nesse sentido, mas a boa da verdade é que nunca é demais bater no ceguinho. E acredito que se nos unirmos e lhe diminuirmos o lucro, a Galp baixa a garimpa. Temos a faca e o queijo na mão, como sempre. Pena é que os portugueses não percebam a sua força e não se unam para fazer valer os seus direitos.
Acorda Lusa gente! Chega de assaltos à carteira! Será que é desta?

sexta-feira, maio 09, 2008

Mundo cão!

A onda de violência xenófoba que assola a África do Sul há doze dias a esta parte dá que pensar. A livre circulação de bens e pessoas na Europa é um dado adquirido e chegam constantemente ao nosso país imigrantes de múltiplas proveniências. Há pelo menos dois milhões de pessoas estrangeiras a viver em Portugal com regalias e oportunidades similares às nossas, a disputar empregos, habitações e tudo o mais que é necessário para subsistir em condições minimamente aceitáveis.
No entanto também nós atravessamos uma época de crise bem dura: os preços dos alimentos, bens de consumo genéricos e serviços não cessam de disparar, os juros da habitação não param de subir, a gasolina atinge preços escabrosos e os salários há anos que
não aumentam proporcionalmente à crise. Cada vez temos menos regalias sociais, em particular na área da saúde, pagando impostos mais elevados do que aqueles que se praticam em nações evoluídas onde o nível de vida da população é superior. Somos assim um país cuja realidade tende a assemelhar-se à dos países terceiro mundistas, em que a classe média está em vias de extinção e a classe privilegiada floresce alegremente, dispersando-se pelos spas, pelas clínicas de estética e pelo turismo rural em carros topo de gama, ostentando roupas de marca e caras postiças. E os políticos incompetentes e laxistas, cuja taxa de absentismo na Assembleia da República é escabrosa segundo dados recentes da comunicação social, deixaram de nos fazer promessas e passaram a intimidar-nos, a calar os nossos protestos e a exigir-nos aquilo que não cumprem. Mantêm em contrapartida um nível de vida insultuoso, tendo em conta que ainda há, entre tantos exemplos chocantes, idosos a sobreviver com rendimentos de 150 euros mensais, e permitem-se as regalias e as bonificações que a nós nos interditam. Favorecem instituições bancárias e clubes de futebol, esquecem a Casa Pia depois de gastarem milhares aos contribuintes e querem que acreditemos que o único pedófilo português é o Bibi. Apregoam a falência da Segurança Social, cortam nas comparticipações dos medicamentos e dos exames médicos, demoram séculos a pagar as suas dívidas, mas continuam a cobrar-nos religiosamente a propina. Mandam-nos fazer rastreios periódicos, como o despiste do cancro do colo do útero, e acusam-nos de não vigiarmos adequadamente a nossa saúde. Porém são cada vez menos os incautos que realizam estes exames pela ADSE, por exemplo, o que significa que um exame de 2.05 euros pode custar ao contribuinte entre 45 a 120 euros, dependendo da gulodice de cada um. Enfim, se eu não tiver reforma quando a minha vez chegar, isto se não morrer antes ou não ficar demasiado podre para conseguir trabalhar, vou exigir os meus impostos com retroactivos no tribunal europeu!
Em suma: e se os portugueses também se lembrassem de escolher os imigrantes como bode expiatório? Se decidíssemos atacar os mais fracos por não termos força anímica nem coragem para atacar quem de direito? Seria bizarro, injusto e desumano, tal como o é na África do Sul. A classe desfavorecida não pilha as casas dos ricaços, não coloca bombas nos seus carrões, nos restaurantes de luxo ou nos hotéis por eles frequentados, nem assalta os bancos onde estes multiplicam os seus dividendos. Não, a classe desfavorecida vinga-se cobarde e desumanamente nos que se encontram em condições ainda mais precárias, nos indefesos, naqueles com quem devia solidarizar-se pois são seus iguais. Mas não. À semelhança dos grandes que lhes atazanam a existência e os reduzem à insignificância, atacam o elo mais fraco, quiçá para provarem o gosto da supremacia por escassos momentos, quiçá por impotência ou desespero.
Qual é então a diferença entre este nosso tempo de prodígios tecnológicos e avanços científicos e a época medieval? É óbvio que, acima de tudo e tal como sempre, vivemos num mundo cão!

quinta-feira, maio 08, 2008

Ficcionando em voz de mim


Os olhos são tão negros e profundos como um mar revolto onde seria fácil naufragar, empurrada por carícias de longas e suaves pestanas. É raro fitá-los mais do que fugidiamente por esse medo de não vislumbrar retorno de tal viagem. Já as mãos são esguias, de dedos longos e suaves que deslizam maciamente. Movimenta-se como os felinos e tal como eles ataca: primeiro com subtileza mansa, para de súbito imobilizar a presa com um rasgo inusitado que derruba as defesas e convida à entrega espontânea. Vive encerrado na sua torre de marfim, que visualizo azul e nublada, vigiando com olhos húmidos aqueles que por qualquer detalhe se tornaram alvo da sua rara atenção. E fá-los embarcar numa imprevisível caminhada até que percebam que a torre é muito alta e que as portadas não abrem e que um telhado a pique pode certamente conduzir a uma espinha quebrada. Porém, o que lhe permite conduzir os seus jogos com certeira destreza é um impensável pendor masoquista: desejo de plenitude. E isso é-me demasiado familiar para o não compreender. Aí então é que tudo atinge uma dimensão única de tão similar.
Quero açúcar nos meus ossos!

(foto Julien Roumagnac)